ERA DA TECNOLOGIA EXPONENCIAL OBRIGA O BRASIL A DESCOBRIR O SEU PROPÓSITO

Para geneticista, alimentação, energia e meio ambiente são oportunidades para o país se destacar no pós-pandemia 

Texto: Luciano Huck entrevista Peter Diamandis no Estadão

01 de agosto de 2020 

Minha conversa de hoje é com uma das mentes mais conectadas do planeta: Peter Diamandis. Geneticista formado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology), fundador executivo da Singularity University e autor de inúmeros best sellers, como o livro Abundância – O futuro é melhor do que você imagina, ele recentemente foi nomeado pela revista Fortune como um dos “50 maiores líderes do mundo”. 

Há décadas Peter vem dialogando e iluminando o caminho sobre o impacto da tecnologia em nosso dia-a-dia —e alertando com estridência para as transformações ainda mais radicais que estão por vir. Da inteligência artificial à exploração espacial, da educação de altíssima qualidade à transformação digital das maiores corporações globais, suas ideias são ouvidas com atenção.

Luciano Huck: O futuro é mais rápido do que você imagina. Excelente para abrir nossa conversa, essa frase é o nome do seu último livro, que, vale frisar, foi publicado em janeiro, antes da pandemia do coronavírus. Nesse livro, você traça um mapa de para onde o mundo está caminhando nesta década. Se fosse fazer uma reedição pós-pandemia, que capítulos deveriam ser reescritos ou incluídos?

Peter Diamandis: A pandemia adiantou tudo em três ou quatro anos. No livro eu discuti o futuro da assistência médica, o futuro do transporte, o futuro do comércio de varejo, o futuro do setor imobiliário… e as projeções para daqui a cinco ou dez anos estão acontecendo agora. Tudo se transformou, tudo se tornou digital. Há 20 anos eu chamo atenção para a iminência e importância da tecnologia exponencial, e aí veio o vírus e ensinou crescimento exponencial em três meses. É insano. A velocidade na qual as coisas estão se acelerando também se acelerou. A quantidade de coisas que você consegue fazer em um dia explodiu. De certa maneira, é fantástico. Agora estamos todos vivendo essa realidade exponencial.

Luciano Huck: É incrível como todas as tendências e assuntos de que você resolve tratar acabam se impondo, se materializando. Anos atrás, a gente conversou sobre abundância, um tema que continua atual. Não é difícil argumentar que a vida melhorou de maneira geral para a humanidade nos últimos séculos. Em 1820, 84% da população mundial vivia na pobreza. Em 1981, eram 44%. Atualmente são menos de 10%. Na Holanda, uma pessoa morando em situação de rua e que recebe assistência pública dispõe de mais renda do que um holandês médio na década de 50. Por outro lado, vivemos desigualdades abissais. Em pleno século XXI, 30 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada, e 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto. Como você enxerga um mundo de abundância que não endereça as desigualdades e a falta de oportunidades?

Peter Diamandis: Todo mundo fala sobre a desigualdade econômica. E é verdade que a diferença entre os ricos e os pobres está cada vez maior. Mas eu gostaria de olhar para isso por outro prisma. Eu prefiro falar de como e até onde nós podemos melhorar a vida do bilhão de pessoas mais pobres do planeta. Se olharmos para 100 mil anos atrás, ou 10 mil anos, mil anos, ou até 200 anos atrás, o mundo podia ser descrito como o rei, a rainha e todo o resto, o faraó e todo o resto e assim por diante. Eram os poucos que tinham e os muitos que não tinham. E o que tem acontecido nos últimos 200 anos é que estamos indo desse mundo dos que têm e dos que não têm para o mundo dos que têm e dos que têm demais. Em outras palavras, nós estamos subindo a base da pirâmide.

Tomemos a energia do sol como exemplo. Nós temos o potencial de, nos próximos 20 ou 10 anos, captar e fornecer toda a energia de que precisamos. E os países mais pobres são justamente os países mais ensolarados. Um dos prêmios da XPrize Foundation, há um ano e meio, foi o da abundância da água. E era um prêmio que desafiava os concorrentes a tirarem a água da atmosfera para fornecer água potável. Nós vivemos num planeta em que dois terços são cobertos de água, mas 97% dessa área é de água salgada e 2% são as calotas polares. Ou seja, nós lutamos por menos de 1% nos rios e lagos. Mas a verdade é que existe água limpa e potável na atmosfera, e nós temos a capacidade de pegar essa água e fornecê-la a um custo muito baixo. Em resumo, ainda estamos focados em elevar os padrões, os patamares. E eu acredito que estamos na direção de um mundo onde podemos suprir as necessidades de cada homem, mulher e criança. É difícil lembrar o quão longe chegamos, mas nós estamos, sim, indo para a frente. É por isso que eu trabalho, é por isso que a Singularity University trabalha, e eu sei que é por isso que você se importa.

Luciano Huck: Você criou uma faculdade para pensar e repensar o futuro. Tem incentivado e desafiado estudantes, empreendedores e intelectuais a projetarem o amanhã em várias frentes, sempre dando protagonismo à ciência. E, como conselho ajuda, mas o exemplo arrasta, você próprio tem investido em empresas que têm a pesquisa e a ciência como foco. Pelo que li na imprensa internacional nas últimas semanas, uma dessas empresas anunciou avanços no desenvolvimento de uma vacina contra a Covid-19 . No Brasil, muitos ainda infelizmente desprezam e desvalorizam a ciência. Então eu te peço que fale sobre a importância da pesquisa científica para a humanidade.

Peter Diamandis: Nós costumamos nos esquecer do quanto avançamos. Há 50 ou 100 anos, a vida era mais curta, mais difícil, as jornadas de trabalho eram de sete dias por semana, dez ou doze horas por dia. Vivíamos no mundo da sobrevivência, era literalmente sobreviver: você se preocupava com o lugar onde moraria no dia seguinte, em onde levaria seu filho ou sua filha doentes, em onde conseguiria remédios. Sim, muita gente ainda vive desse jeito, mas a maior parte das pessoas saiu desse patamar. Tudo isso graças à ciência e à tecnologia. Às vezes, assumimos que muitas coisas sempre estiveram aí. Poder pesquisar na internet e descobrir qualquer coisa na hora em que quiser? Ter mapas que te mostram o caminho instantaneamente? Ora, anos atrás nós tínhamos esses grandes papéis em que você desenhava linhas enquanto dirigia para algum lugar!

Se ainda temos dificuldades e desafios de todos os tipos no mundo, a nossa capacidade de focar e resolver esses problemas se tornou mais rápida do que nunca. A pandemia chegou nos primeiros dias de janeiro, começou a se tornar pública em fevereiro, e em março nós acordamos, vimos que ela era real e que ia começar a afetar a economia. E, pela primeira vez na história da humanidade, o mundo inteiro focou nesse inimigo. Não importa onde você mora, a conversa na mesa de jantar, nas reuniões, nos círculos políticos, era tudo sobre esse único inimigo. Você sabe, Luciano, que eu falo dos exponenciais que começam quando você digitaliza algo, de uma resposta de início decepcionante que subitamente se torna disruptiva. Então, no começo, nossa reação à pandemia foi naturalmente muito lenta. Vamos ter os ventiladores pulmonares? Vamos ter as máscaras? Vamos ter vacinas? Vamos ter um tratamento? Todo mundo se perguntava onde estavam essas coisas. Nós não tínhamos nada. Mas os empreendedores responderam a isso. De repente, por exemplo, nós tínhamos muitas máscaras de vários tipos sendo produzidas ao redor do mundo. Em março, eu me encontrei com um grupo de colegas brilhantes do setor de medicamentos, da biomedicina e da biotecnologia, e nós dissemos que precisaríamos de uma vacina. E nesse período a empresa em que eu decidi investir, a Covaxx, desenvolveu 30 vacinas paralelamente. E nós já selecionamos a principal candidata. É impressionante como o mundo mergulhou e começou a inovar.

Peter Diamandis: E é por isso que as pessoas têm que acreditar na ciência. Conforme nós invadimos as florestas, conforme entramos na selva, conforme nos misturamos com os animais criando interações com eles, mais vírus passarão do mundo animal para o nosso mundo, onde não temos proteção nenhuma. E nós temos que criar essa capacidade científica e tecnológica de detectar os vírus bem no começo, sequenciar eles imediatamente, enviar essa sequência na velocidade da luz para laboratórios ao redor do mundo e começar a produzir vacinas na hora seguinte. É isso que a tecnologia exponencial pode fazer, esses são os tempos exponenciais que estamos vivendo.

Luciano Huck: Tudo indica que a ciência será capaz de equacionar os impactos da Covid-19, graças a Deus. Mas existe uma outra “pandemia”, que, se de fato se manifestar, nem a ciência terá força e capacidade de endereçar, que é a “pandemia” da mudança climática. Isso me preocupa especialmente porque nenhum outro país tem as riquezas naturais e a vocação agrícola do Brasil. A meu ver, o lugar do Brasil no mundo deveria ser o de Potência Verde. Uma respeitada nação agroindustrial sustentável. Herdamos as maiores e melhores matrizes naturais do planeta, as mais equilibradas. Nenhum outro país pode oferecer uma produção de alimentos tão volumosa respeitando a gramática da sustentabilidade. Você acha que o mundo, governos e cidadãos irão levar mais a sério as ameaças ambientais pós-pandemia?

Peter Diamandis: Primeiramente, eu concordo que o Brasil tem uma oportunidade imensa. Historicamente, todo ano fazemos uma cúpula da singularidade, e nós trazemos parceiros do Brasil para falar de como a tecnologia exponencial pode ser aplicada aí. Aliás, o Brasil é o país mais sedento por ciência e tecnologia que eu já vi. Na Singularity University nós recebemos alunos do mundo todo, e o país que mais manda alunos para aprender sobre tecnologia exponencial não é o Canadá, não é um país europeu, não é a China: é o Brasil. Isso é ótimo, nós temos mais graduandos em singularidade brasileiros do que de qualquer outro lugar, exceto dos EUA. E eu acho, sim, que o Brasil tem uma oportunidade massiva nas áreas da alimentação, da energia e do meio ambiente. Ele tem a capacidade de se tornar o líder nessas áreas se quiser. Mas precisa sair do mundo antigo para o novo mundo. Nós estamos a 10 ou 20 anos de o petróleo ser uma coisa do passado. E todas as economias baseadas no petróleo têm que se dar conta de que o custo da energia solar está despencando, de que nós vamos chegar em menos de um centavo de dólar por kWh. Nós vamos ter energia estocada, o que é incrível, é só ver o que a Tesla está fazendo no mundo. E, enfim, vamos ver a economia verde das florestas tropicais e das costas do Brasil. Toda a diversidade biológica tem um valor imenso.

Se eu fosse cínico, eu diria que o mundo gerou essa pandemia para ajudar o meio ambiente, porque nós desaceleramos a economia, os aviões não estão voando, não estamos dirigindo carros e o meio ambiente está melhorando. Eu não acredito que vamos resolver os problemas do meio ambiente com decretos governamentais. Eu acho que nós vamos resolver os problemas do meio ambiente porque a tecnologia vai tornar isso mais barato, porque ela facilitou o uso de energia solar e de carros e veículos elétricos. Porque hoje eu uso a tecnologia assim, para me “transportar” até você instantaneamente, e poder conversar sem ter que entrar num avião. A tecnologia vai reduzir a pegada de carbono no planeta.

Luciano Huck: Você pode falar um pouco sobre o Xprize, e especialmente sobre a Xprize Rainforest, com uma premiação de US$ 10 milhões para as melhores iniciativas?

Peter Diamandis: O prêmio desafia os participantes a calcularem o valor de uma floresta tropical pela sua biodiversidade. Se você tem um terreno que faz parte de uma floresta tropical, você pode medir o valor dele pela quantidade de madeira que você corta e pelo quanto você a vende. Você também pode calcular o valor pelo tanto que você planta nesse terreno. Mas, por outro lado, há muita biodiversidade lá que você nunca avaliou. E, quando você derruba a mata, você destrói essa biodiversidade sem perceber o valor daquilo que está destruindo. Então esse XPrize está pedindo às equipes que consigam calcular o valor de um acre ou de um hectare de terra em 24 horas pela quantidade de biodiversidade que existe ali. Porque você valoriza o que você consegue medir, e, no momento, nós não conseguimos medir essa riqueza. Essa é uma das principais iniciativas desse prêmio, e ela vai permitir que o Brasil, ou que uma pessoa que possua um terreno florestal, coloque esse valor financeiro nos seus registros. Isso vai mostrar que o terreno vale muito mais do que a madeira que se pode cortar nele, muito mais do que o milho que você pode plantar ali. Vai mostrar o quanto o terreno vale pela sua biodiversidade.

Luciano Huck: Estima-se que hoje no mundo já existam algo como US$ 50 trilhões disponíveis para investimentos em economia limpa, provenientes de fundos de pensão que até ontem buscavam investimentos em campos de petróleo, redes de transmissão, rodovias e pólos petroquímicos. No pacote de EU$ 3 trilhões para recuperação econômica pós-pandemia, liderados principalmente pela Alemanha, os países da União Europeia deram muita importância ao tema. No Brasil, para atrair esse tipo de investimento, teremos de abrir um diálogo conciliador e criativo, com propósito, e abandonar dogmas econômicos do século passado. Como você enxerga essas novas oportunidades?

Peter Diamandis: A pandemia causou um grande impacto negativo na vida das pessoas, na capacidade de conseguirem empregos, na saúde… Mas ela conseguiu nos colocar na direção de um futuro mais sustentável e criou oportunidades gigantescas para empreendedores. Os grandes problemas do mundo são grandes oportunidades de negócio, e eu ensino que, se você quer se tornar um bilionário, ajude um bilhão de pessoas. Eu acho que são mindsets que podem impulsionar o mundo.

Luciano Huck: A pandemia fez acelerar transformações que poderiam levar anos para se materializar. Decisões que poderiam levar uma década foram tomadas em semanas, para o bem e para o mal. Grandes corporações que nunca imaginaram que poderiam ser eficientes e produtivas com 100% dos seus colaboradores trabalhando à distância já adotaram para sempre esse novo modelo de trabalho. Como você enxerga essa mudança?

Peter Diamandis: As empresas descobriram que podem diminuir de tamanho e ser mais eficazes. Softwares e serviços de inteligência artificial realizam o trabalho antes feito por grandes grupos de pessoas. Por videoconferência, posso fazer reuniões todo dia ou três vezes por semana com minha equipe, e, para mim, não importa se o funcionário está na rua de baixo aqui em Los Angeles ou em São Paulo. Estamos trazendo algumas fábricas para perto, porque nos preocupamos com a disrupção de equipes de suporte, mas ao mesmo tempo estamos muito mais abertos a contratar alguém do outro lado do mundo se existirem boas conexões digitais. Eu posso contratar um cientista superinteligente, um empreendedor, não importa onde more, só precisa ser capaz de trabalhar com a minha equipe por meio das plataformas digitais. E de repente nós teremos empresas globalizadas e distribuídas pelo mundo com poucas pessoas. Por isso o aumento das taxas de desemprego será o desafio imediato. Nós precisamos reabilitar as pessoas que tinham empregos na economia do mundo antigo à economia do novo mundo.

Luciano Huck: Mas como gerar comprometimento e engajamento se as relações de trabalho serão todas digitais? Eu entendo que, por um lado, nós vamos abrir, para ter mais pessoas espalhadas, mas estar junto é fundamental.

Peter Diamandis: Você me conhece, eu gosto de cumprimentar as pessoas com um grande abraço. Mas eu tenho funcionários em minhas empresas que eu nunca encontrei. São funcionários digitais, sob demanda. São o coletivo da colaboração coletiva. Existe a importância de colocar todo mundo junto uma vez a cada três meses, de ter esse contato pessoal, porque nós somos humanos, nós temos uma conexão humana. Mas também é possível ter uma relação de trabalho digitalmente produtiva. A maioria das pessoas ainda não percebeu que a velocidade da inteligência artificial está se acelerando. E, enquanto pensamos que a inteligência artificial é legal nos nossos celulares, nas pesquisas do Google, nos aplicativos de cuidados com a saúde, nos videogames, nós não reparamos que estamos a 5 ou 10 anos de criar humanos virtuais com inteligência artificial. E eles serão inteligências artificiais que parecem com uma pessoa, que falam como uma pessoa com quem você pode conversar, você vai poder até construir uma relação com eles, e ainda assim serão completamente virtuais, eles não vão existir de verdade. Eles vão nos vender coisas, vão responder perguntas, e nós estamos indo rapidamente nessa direção.

Luciano Huck: Mas quando você fala disso num país como o Brasil, onde as oportunidades não são iguais para todos, quando você fala de inteligências artificiais realizando trabalhos que as pessoas estão fazendo agora, se torna imperativo discutir a educação, porque nós precisamos preparar as pessoas para essa nova era. E isso só a educação é capaz de fazer. E, por falar em educação, essa foi uma questão delicada no Brasil durante a pandemia. A crise sanitária e suas consequências iluminaram as enormes desigualdades que vivemos por aqui. Uma delas, e das mais graves, foi a desigualdade educacional. Mesmo tendo mais chips ativos de celulares do que cidadãos, nosso sistema público de ensino é analógico. Alunos digitais em uma escola analógica. Das escolas públicas brasileiras, 90% estavam “desconectadas”. O que nos salvou em parte foi o trabalho hercúleo dos gestores locais e professores que começaram a improvisar como podiam para tentar manter seus alunos estudando à distância. Como você avalia as transformações na educação pós-Covid19?

Peter Diamandis: Tenho dois meninos de 9 anos, e Los Angeles está com as escolas fechadas. A pergunta é: o que vem em seguida? Porque, sinceramente, colocar eles em salas de aula com mais 30 alunos nos seus computadores ou nos seus tablets, e apenas um professor lidando com todos por meio de videoconferência, isso não funciona. Por outro lado, não vamos ter alunos em salas de aula agora. Mas existem grandes oportunidades que nos dão a chance de reinventar a educação. A educação não mudou em centenas de anos, ainda é uma sala com uma pessoa falando para 30 alunos, se você tiver sorte, ou para 100, se você não tiver. Metade das crianças estão perdidas, metade está entediada. É um processo ridículo. Temos que reinventar a educação.

A boa notícia é que a Covid-19 está nos forçando a reinventá-la. Milhares, talvez dezenas de milhares de empreendedores estão trabalhando nisso ao redor do mundo. Ela ainda não chegou, mas daqui a um ano, eu aposto que teremos opções educacionais.

A melhor educação do mundo, aquela voltada para os filhos e filhas dos bilionários, vai ser uma educação individual, com um professor incrível, superinteligente, que conhece o nível educacional daquela criança, conhece as habilidades dela com a língua, sabe a cor favorita dela, sabe qual é o astro esportivo preferido, o ator e a atriz preferidos, e que poderá dar a ela uma educação tão pessoal que a criança vai adorar, ela vai estar sempre envolvida em aprender. E, do outro lado, vai ser um professor tentando lidar com 30, 50, 100 crianças. Nós vamos entrar no mundo da inteligência artificial, no qual essa I.A. vai poder ser esse professor particular.

Existe um ótimo exemplo: o mundo dos videogames. Meus meninos de 9 anos são experts em todos os jogos de videogame. Eles os conhecem perfeitamente, são impelidos a jogar. No mundo da educação, você começa com uma nota 100, e, cada vez que você erra, a sua nota cai, é muito desmotivante. No mundo dos videogames, você começa no zero e, cada vez que você acerta, a sua nota sobe. É aprendizagem por reforço, você aprende todas as regras. Porque não podemos fazer a educação assim? Na China, eles têm esses aplicativos de aprendizagem. É um celular com uma câmera voltada para o rosto da criança: ela está vendo uma aula e respondendo às questões, e a câmera pode ver se a criança está entediada, se está perdida ou se está animada. E o aplicativo pode trocar de aula se perceber que a criança está com dificuldades pela sua expressão facial. É uma situação pessoal de um para um. Se a criança não está acompanhando, o aplicativo pode voltar e começar de novo, tentar uma nova abordagem do assunto. Agora, isso não vai substituir a empatia humana, a conexão e a bondade humanas, nem o aprendizado de como ser uma boa pessoa, de como amar as pessoas e ser gentil e tudo mais. Mas é um jeito de personalizar a educação —e o custo disso é o gasto com eletricidade, com os celulares, cujo preço despencou, com a banda larga, que aliás vai se tornar gratuita. Nós estamos indo em direção a um outro mundo. A educação vai se tornar cada vez melhor, cada vez mais barata e disponível para mais pessoas. E o mesmo vai acontecer com a assistência médica.Para mim, as duas grandes indústrias que têm que mudar, que têm que se transformar, e que serão completamente disruptivas, são a da educação e da assistência de saúde.

Luciano Huck: Você é tratado pelas principais corporações mundiais como alguém capaz de iluminar caminhos e contribuir com as transformações necessárias para que as empresas se adaptem a este novo mundo, onde tudo é exponencial, onde a tecnologia cada vez mais estará presente no nosso dia-a-dia. Mas te faço uma provocação. Quando olhamos para o Estado, ele continua praticamente o mesmo das últimas décadas. Ainda é pesado, ineficiente e pouco produtivo. Realmente não se reinventou. Se você fosse contratado por um país para começar a prepará-lo para o futuro, por onde começaria?

Peter Diamandis: Primeiro, um país, assim como uma pessoa, assim como uma empresa, tem que ter uma missão e um propósito. Você precisa estar certo do que você é. Você precisa ter uma marca do seu país, algo que diga, é isso que nós somos e é por isso que nós trabalhamos no mundo. Para o Brasil, poderia muito bem ser sobre a economia verde, sobre alimentação para o mundo, sobre energia para o mundo. Pode ser qualquer uma dessas três, ou todas essas três, mas é preciso escolher algo para que o mundo te conheça por isso —e trabalhe nisso com você. Então, ter um grande propósito transformador como uma nação, algo que una a nação, é importante. A partir disso, você pode construir a camada educacional que vai trazer a melhor ciência, as melhores possibilidades de alcançar esse propósito. Você pode pensar nos EUA de algumas maneiras, mas o programa Apollo foi, para os EUA e para a União Soviética, um dos grandes eventos, todos aqueles engenheiros espaciais e etc, e agora temos o Vale do Silício na área de computadores e de softwares. E, quando você tem uma visão clara de quem você é como nação, os grandes empreendedores do mundo vêm até você. Quando você cria os suportes financeiros e legais, você constrói a base nas quais as grandes empresas podem crescer e se desenvolver para trabalhar para o mundo e não só para um país. É nisso que eu focaria em um país: quem somos nós, qual o nosso propósito, nossa visão, nossa missão no mundo. Quando o mundo pensa no Brasil, não só nas praias de lá, do que o mundo deveria lembrar? E como nós devemos educar a população para que ela seja realmente extraordinária nessa área? Como eliminamos nossas perdas para nos tornamos mais liberais nesta área? Como trazemos o capital de investimento para que possamos florescer em um nível global nessa área?

Luciano Huck: Enquanto você falava, eu lembrei de um TED Talk em que você fala sobre o alumínio na época de Napoleão. Você poderia relembrar a história, e para você, o que seria o alumínio nos dias de hoje?

Peter Diamandis: Bom, nós nos esquecemos do mundo de abundância em que vivemos. Se você voltar centenas de anos, o metal mais caro do mundo não era o ouro, não era a prata. Era o alumínio. E isso é estranho. Hoje nós vemos o alumínio como uma tecnologia descartável. É um dos metais mais abundantes na crosta da Terra, mas todo o alumínio está ligado a oxigênio e silicatos nessa substância marrom chamada bauxita. E era tão caro extrair o alumínio puro da bauxita que ele valia mais do que ouro e prata. Os reis e rainhas mais ricos tinham pratos de alumínio em que serviam os convidados reais. E a ponta do Monumento de Washington, em Washington D.C., a ponta do obelisco construído na década de 1840 não é de ouro, mas de alumínio. Um dia, nós descobrimos uma tecnologia chamada eletrólise, que usa eletricidade para extrair o alumínio da bauxita. E ela é tão eficiente, tão barata, que nós passamos a ter uma abundância de alumínio.

O que está acontecendo agora é que a tecnologia pega tudo que é escasso e transforma em abundante.

Tome o caso da energia. A energia costumava ser bastante escassa. Nós caçávamos baleias para usar o óleo delas para iluminar a noite. Depois nós vasculhávamos montanhas para conseguir carvão. Nós cavamos quilômetros no chão e quilômetros para dentro dos oceanos para conseguir petróleo. Mas agora nós vivemos num mundo que consegue uma abundância de energia limpa. O mesmo acontecerá na educação e na assistência de saúde. Vai ser o mundo dos sensores, da inteligência artificial e das redes. Esse mundo está chegando. Tudo isso tem a ver com a ciência e a tecnologia. Se fosse para eu dizer uma coisa para inspirar os empreendedores do Brasil, encontre um problema que você ama, que você quer resolver, porque, quando você o resolve, você não gera riqueza só para você, isso levanta a população do Brasil e de todo o mundo.

Luciano Huck: Enquanto grande parte dos jovens ocidentais cresceu numa era de tecnocracia apolítica, nossa geração, se quiser de fato deixar um legado além dos nossos próprios bolsos, terá que considerar a política e encontrar uma nova utopia. Porque, a meu ver, só o Estado tem capacidade de gerar transformações exponenciais quando tratamos de bem-estar estar social. Considerando tudo que você está vendo, ouvindo, estudando e investindo, qual você acha que será nossa próxima utopia?

Peter Diamandis: Nossa próxima utopia vai ser a capacidade de separar o trabalho pelos ganhos financeiros e o trabalho pelo que você ama fazer. Estamos caminhando para um mundo no qual vamos desmonetizar o custo de vida. No qual carros elétricos autônomos vão ser muito mais baratos do que ter e dirigir um carro. No qual, em vez de só ter os helicópteros dos ricos voando pelos céus de São Paulo, veículos elétricos autônomos estarão ao alcance de todos, poupando o tempo de todos. Um mundo no qual o preço da alimentação vai diminuir, a energia será gratuita, um mundo no qual o preço da educação e da assistência de saúde, realizadas por inteligências artificiais e sensores, vai ficar cada vez mais baixo. E, finalmente, hoje, quando as pessoas trabalham para colocar comida na mesa das suas famílias ou porque elas precisam de um seguro de saúde, elas não escolhem seus empregos, é sempre a única opção, isso se elas tiverem a sorte de ter um emprego.

Então a utopia para a qual nós estamos indo é esse mundo onde eu trabalho com algo porque era o meu sonho de criança, e o custo de vida se tornou tão baixo que isso é possível. Nós pensamos que o socialismo é quando o governo está cuidando de você, mas imagine que você tem uma versão tecnológica disso, que a tecnologia está cuidando de você, não o Estado. É nesse caminho que estamos. Um mundo onde vamos melhorar a vida de todos os homens, mulheres e crianças, onde todos terão acesso às necessidades básicas de graça. Eu acho que isso é economicamente possível. E isso permitirá às pessoas sonharem, é disso que precisamos, que uma criança possa nascer na favela e saber que ela pode fazer qualquer coisa que quiser. Esse é o mundo possível para mim, essa é a próxima utopia.

Luciano Huck: Muito obrigado, Peter. É sempre um grande prazer falar com você. Se a intenção era jogar luz no mundo pós-pandemia, hoje rolou.

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A economia das plataformas digitais – Tudo virou plataforma

por Evandro Milet 

Steve Jobs, considerado um gênio, também cometeu seus erros, corrigidos a tempo. Quando lançou o iPhone em 2007, Jobs pretendeu verticalizar totalmente hardware e software, mas acabou percebendo a importância de transformar a Apple em uma plataforma que unisse desenvolvedores independentes de software aos milhões de felizes usuários daquele hardware e criou a App store, hoje com mais de dois milhões de aplicativos.

Plataformas são definidas como modelos de negócios que criam valor facilitando interações diretas de dois ou mais tipos diferentes de clientes.

Existem quatro tipos de plataformas: marketplaces, sistemas de transação, mídia sustentada por anúncios e padrões de hardware e software. 

Os marketplaces podem ser de produtos como os da Amazon, Alibaba e as brasileiras Magalu e B2W; podem ser de serviços como os conhecidos Uber e Airbnb ou aqueles de educação como Udemy e Coursera; e podem ser de relacionamento como Tinder ou aqueles que conectam profissionais ao seu mercado como GetNinja ou Amazon Mechanical Turk ou mesmo o Linkedin.  

Os sistemas de transação incluem aqueles na área financeira como Visa e Mastercard ou a capixaba PicPay. 

As plataformas de mídia podem incluir YouTube que reúne criadores de conteúdo independentes, consumidores de conteúdo e anunciantes – cada um procurando os outros, e Netflix com seus filmes ou mesmo os órgãos de imprensa que se organizam assim. 

Nas plataformas de padrões de hardware e software temos, em sistemas operacionais,  iOS, da Apple e Android, do Google que atraem os melhores desenvolvedores de software para criar aplicativos, que, por sua vez, atraem consumidores para comprar seus smartphones. E nos padrões de jogos despontam  Xbox e PlayStation.  

As plataformas representam uma mudança fundamental em como as empresas se relacionam umas com as outras – de modelos de negócio lineares ou pipelines, para modelos de negócios mais em rede. Em vez de desenvolver atributos e convencer os clientes a usar seus produtos e serviços, os negócios de plataforma constroem ecossistemas e induzem os clientes a interagir uns com os outros.

Em vez de pagar por serviços recebidos, os clientes fornecem e recebem valor. Em consequência, o valor das plataformas cresce à medida que mais pessoas as utilizam.

O melhor vendedor do mundo foi quem vendeu o primeiro telefone. O comprador não tinha para quem ligar. O fenômeno de crescimento das redes atende pelo nome de Lei de Metcalfe. A medida que aumenta o número de usuários, cada novo usuário acarreta um aumento exponencial no número de conexões potenciais que podem ser feitas na rede(conexões = n(n-1)/2). Por isso, numa plataforma com efeitos de rede para as duas partes, os novos desafiantes enfrentam formidável barreira de entrada, criando o modelo onde o vencedor leva tudo. Novos clientes atraem novos fornecedores que atraem novos cliente em velocidade de propagação de rede.

Algumas plataformas são dedicadas, como Uber e Airbnb, mas cresce muito a utilização do conceito por empresas de forma híbrida. A Nike, por exemplo, de produção de material esportivo, criou a sua rede de startups oferecendo softwares diversos que apoiam os atletas nos seus treinamentos e competições. 

A proliferação do conceito de inovação aberta, onde grandes empresas abrem suas dores para o mercado resolver, cria também, em cada uma, uma rede de startups que apoiam e geram valor para os clientes, além da operação interna. Esse conceito vale para empresas de qualquer setor, que buscam agora a maneira de se transformar em plataformas.

Outras empresas aproveitam a sua forte conexão com o mercado para criar plataformas que conectem fornecedores com eles mesmo e abertos para outros clientes, como acontece agora com o Hospital Israelita Albert Einstein com o lançamento da plataforma Supply4Med que liga fornecedores da cadeia hospitalar a hospitais e clínicas.

A economia de plataformas está inclusive modificando o comércio internacional. Há um crescimento de exportação de pequenas e médias empresas feitas através das plataformas de e-commerce, sem que precisem montar suas próprias cadeias de suprimento. Esse crescimento pode inclusive mudar o controle do comércio, de países para essas plataformas, com inúmeras implicações fiscais e políticas.

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Um poeta enxergou o futuro digital na metade do século XX

por Evandro Milet

Em seu conto “O Aleph” de 1949, Jorge Luis Borges, poeta e escritor, relata o dia em que viu, no porão de uma casa nos arredores de Buenos Aires, o Aleph, uma esfera furta-cor de dois ou três centímetros de diâmetro onde se concentravam todos os pontos do universo, todos os rostos, todos os lugares, todas as coisas. Depois disso, onde andasse, tudo lhe parecia familiar. Depois ele mesmo explicaria: “O que a eternidade é para o tempo, o Aleph é para o espaço”.

Parece que a ficção fantástica vira realidade e qualquer um hoje pode ver, não em uma esfera, mas em uma tela plana de poucos centímetros de um smartphone, todas os rostos nas redes sociais, todos os lugares no Google Maps com Street View e todas as coisas com os mecanismos de busca e a proliferação do big data.  E muitas das coisas que vemos podem até ser compradas na hora em um marketplace, ou podemos aprender a fazê-las em um vídeo no YouTube.

E a realidade supera a ficção porque não apenas vemos tudo, mas também nos comunicamos com todos e não precisamos ir a um porão – quer dizer, a não ser para tentar pegar o difícil sinal da operadora -, enquanto a internet das coisas se expande para permitir que os objetos se comuniquem entre si com base nos sensores que estarão em todos os lugares e que nos avisem de problemas. 

E não ficamos limitados apenas em perceber os rostos como familiares. O reconhecimento facial e os registros em bancos de dados vão nos dizer de quem são aqueles rostos, o que fazem e, para os governos, vão informar se já cometeram crimes ou se são perigosos. E o conceito de perigosos varia conforme o regime político.

E as coisas podem falar conosco como fazem os assistentes pessoais, podem responder nossas perguntas e tirar nossas dúvidas. Podem permitir conversas em línguas diferentes em traduções cada vez mais próximas da perfeição. Podem comandar compras e ajudar as crianças no dever de casa.

Mas Borges, que faleceu em 1986, antes da internet e do big data, vislumbrou outras coisas. Em seu conto A Biblioteca de Babel, publicado em 1944, ele imaginou uma biblioteca infinita que abarcasse todos os livros e “quando se proclamou essa capacidade, a primeira impressão foi de extravagante felicidade.” Tudo bem que não temos uma biblioteca infinita, mas uma livraria infinita como a Amazon já é de extravagante felicidade.

A biblioteca do conto serviu de inspiração para Umberto Eco na trama medieval do excelente O Nome da Rosa, e Borges teve até direito a dar o nome ao bibliotecário cego(como ele no fim da vida) do mosteiro, Jorge de Burgos, em uma parceria de gênios.

Além de escrever coisas fantásticas, Borges foi um visionário digital. Afinal, como ele dizia: “os poetas, como os cegos, podem ver no escuro”.

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“Home office” fortalece bolhas sociais

As empresas fariam bem de não abrir mão totalmente dos escritórios

Por Carlo Ratti — Para o Valor

31/07/2020  

No mês passado, o CEO do Twitter, Jack Dorsey, anunciou que a empresa iria autorizar seus funcionários, hoje trabalhando de casa, conforme os protocolos de distanciamento social, a continuar assim. Várias outras empresas – do Facebook ao fabricante francês de automóveis PSA – seguiram o mesmo caminho de manter muito mais empregados em casa quando a crise da covid-19 acabar. Será o escritório a próxima vítima da pandemia?

De certo modo, não é de hoje que se fala na morte do escritório. Na década de 1960, o futurista americano Melvin Webber (1920- 2006) previu que o mundo chegaria a uma “era pós-cidade”, na qual “será possível se instalar no topo de uma montanha e manter contato íntimo, em tempo real e realista com as empresas ou outros colaboradores”.

Resultados iniciais de uma pesquisa do MIT sugerem que, com o ‘home office’, laços fortes já existentes se fortalecem e os fracos ficam debilitados

Durante a explosão das “pontocom” no fim dos anos 1990, a ascensão das empresas de internet deixou esse futuro mais próximo do que nunca. Como a jornalista britânica Frances Cairncross cravou em 1997, a internet significou “a morte da distância”. Uma vez que a distância não faz diferença, por essa lógica os escritórios – e consequentemente as cidades – se tornam irrelevantes.

Pode parecer que nós estamos chegando a esse ponto. Dos apresentadores de programas de TV aos funcionários de escritório, tarefas que antes se pensava que necessitassem de um local de trabalho compartilhado são hoje realizadas de casa durante a pandemia. No entanto, qualquer um que já esteve em uma reunião de vídeo pelo Zoom sabe que, apesar dos avanços nas tecnologias de comunicação, de modo geral, se relacionar a distância com seus colegas ainda é mais difícil do que nos encontros presenciais.

O problema parece ir muito além de fusos horários ou interrupções de crianças. Como disse em 1973 o sociólogo Mark Granovetter, sociedades funcionais se baseiam não só em seus “laços fortes” (relações casuais). Onde os laços fortes tendem a formar redes densas e que se sobrepõem – em geral, nossos amigos próximos são amigos próximos uns dos outros -, os laços fracos nos conectam a um grupo maior e mais diversificado de pessoas.

Por unir círculos sociais diferentes, é mais provável que os laços fracos nos conectem a novas ideias e perspectivas, desafiando nossos preconceitos e cultivando a inovação e sua difusão. E ainda que os chats em vídeo ou as mídias sociais possam nos ajudar a manter nossos laços fortes, é improvável que eles produzam novos laços, e muito menos que nos conectem com tantas pessoas de fora dos nossos círculos sociais: baristas, colegas de viagem de trem, pessoas com quem nós trabalhamos diretamente ou não, e por aí vai.

Uma análise de dados de estudantes, professores e gestores do MIT durante a pandemia parece confirmar essa hipótese. Meus colegas e eu desenvolvemos dois modelos da mesma rede de comunicação – um mostrando as interações antes que o campus fechasse, e o outro mostrando as interações durante o fechamento.

Os resultados iniciais – que ainda vão precisar de validação e revisão por pares – indicam que as interações estão se estreitando, com as pessoas trocando mais mensagens com um grupo menor de contatos. Em resumo, os laços fortes já existentes estão se fortalecendo, enquanto os laços fracos estão se debilitando.

Talvez no futuro seja possível imitar o acaso físico e formar laços fracos on-line. Porém, por enquanto, as plataformas on-line parecem mal preparadas para fazer isso. Pelo contrário, na maioria das vezes elas filtram ativamente indivíduos desconhecidos ou ideias contrárias – uma função que já vinha alimentando as divisões políticas antes mesmo da pandemia. Como resultado, nossas bolhas sociais reforçadas pelo “lockdown” estão cada vez mais opacas.

Espaços físicos compartilhados parecem ser o único antídoto para essa fragmentação. Os escritórios, que facilitam interações mais profundas entre colegas distintos, podem ser um corretivo especialmente poderoso.

No entanto, parece improvável que a procura por espaços compartilhados vá voltar aos níveis pré-pandemia. Empresas como o Twitter, que não querem ver a produtividade cair, estarão ansiosas para cortar despesas gerais. Já quanto aos empregados, não é como se fosse muito difícil acostumar alguém a viver sem deslocamentos demorados, calendários corporativos apertados e roupas de trabalho desconfortáveis.

Isso ainda terá consequências mais amplas. Mesmo uma redução de 10% na procura por espaços para trabalhar poderia causar um desabamento nos preços de imóveis. Porém, ainda que isso signifique más notícias para empreiteiras, engenheiros, arquitetos e corretores, também poderia aliviar as pressões econômicas por trás da “gentrificação” urbana.

De qualquer modo, as empresas fariam bem de não abrir mão totalmente dos escritórios, em nome delas mesmas – ideias novas, inovadoras e colaborativas são essenciais para o sucesso – e para o bem-estar das sociedades nas quais elas atuam. Em vez disso, elas podem autorizar os funcionários a ficar mais tempo em casa e, ao mesmo tempo, adotar medidas para garantir que o tempo que as pessoas passam no escritório permita o estabelecimento de laços fracos.

Isso poderia se traduzir, por exemplo, em transformar as plantas tradicionais, pensadas para facilitar a execução solitária de tarefas, em espaços mais abertos e mais dinâmicos, que incentivem o assim chamado efeito refeitório. (Em nenhum outro lugar é mais fácil estabelecer laços fracos do que durante o almoço no refeitório.) Outras reformulações radicais podem vir depois, com os arquitetos encontrando maneiras de gerar circunstâncias favoráveis, como as que ocorrem por meio de espaços coreografados e “planejados para o evento”.

A crise da covid-19 está mostrando que nós temos as ferramentas para continuar conectados do alto de uma montanha – ou até mesmo da mesa da cozinha de casa. Nosso desafio atual é tirar proveito do espaço físico de modo a descer de nossos picos isolados com frequência. Isso quer dizer mirar no renascimento do escritório de modo a otimizar seu maior ativo: a capacidade de cultivar todos os laços que o unem. (Tradução de Fabrício Calado Moreira)

Carlo Ratti leciona no Massachusetts Institute of Technology, onde dirige o Senseable City Lab, e é cofundador do escritório internacional de arquitetura CRA-Carlo Ratti Associati. Ele é copresidente do Futuro Conselho Global das Cidades do Fórum Econômico Mundial.

https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/07/31/carlo-ratti-home-office-fortalece-bolhas-sociais.ghtml

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Antifrágil – coisas que se beneficiam com o caos

por Evandro Milet

No seu livro anterior “A Lógica do Cisne Negro”, Nassim Taleb apresentou o problema do Cisne Negro(animal que se considerava inexistente até ser visto, pela primeira vez, inesperadamente, na Austrália, no século XVII) , como ele denominou a impossibilidade de calcular os riscos de importantes e raros acontecimentos e prever sua ocorrência. Um Cisne Negro é um evento com três características altamente improváveis: é imprevisível, ocasiona resultados impactantes e, após sua ocorrência, inventamos um meio de torná-lo menos aleatório e mais explicável. 

Taleb sustenta que a maior parte da história tem origem em acontecimentos do tipo Cisne Negro. Esses eventos nos fazem sentir como se pudéssemos tê-los previstos, pois são retrospectivamente explicáveis. Não percebemos sua importância por causa dessa ilusão de previsibilidade, e a nossa mente está ocupada em transformar a história em algo suave e linear, o que nos faz subestimar a aleatoriedade. 

São cisnes negros a derrubada das torres gêmeas, a crise financeira de 2008/9, um tsunami, o acidente nuclear de Fukushima, a pandemia do coronavírus, assim como no nosso caso, a morte de Tancredo Neves ou o desastre da Samarco em Mariana. Também acontecem cisnes negros para empresas, famílias ou instituições como um acidente de avião que mata a cúpula de uma empresa, uma mudança disruptiva de tecnologia, um concorrente inesperado ou um incêndio na sede.

Em função dessa imprevisibilidade, na sua publicação posterior ‘Antifrágil”, Taleb propõe que nossas abordagens atuais para predições, prognósticos e gerenciamento de riscos sejam mantidas apenas em nossa mente e procuremos eliminar a fragilidade das coisas para que os cisnes negros sejam absorvidos. Quando tentamos prever riscos, imaginamos o pior cenário já ocorrido, sem atentar para para que o pior cenário, quando ocorreu, superou o pior cenário anterior. 

Mas não existe uma palavra para designar exatamente o oposto de frágil. Taleb propõe chamá-lo de antifrágil. A antifragilidade não se resume à resiliência ou à robustez. O resiliente resiste a impactos e permanece o mesmo; o antifrágil fica melhor. Algumas coisas se beneficiam dos impactos; elas prosperam e crescem quando são expostas à volatilidade, ao acaso, à desordem e aos agentes estressores, e apreciam a aventura, o risco e a incerteza.

A antifragilidade é uma propriedade de todos aqueles sistemas naturais e complexos que sobreviveram, como a própria natureza. Privar esses sistemas de volatilidade, aleatoriedade e agentes estressores os prejudicará. Eles enfraquecerão, morrerão ou serão destruídos. Ele mostra que viemos fragilizando a economia, nossa saúde, a vida política, a educação e quase tudo, ao suprimir a aleatoriedade e a volatilidade. 

O conceito vale para pais superprotetores, para tomar remédios desnecessários, para valorizar ditaduras no lugar de democracias ou para o processo de inovação que depende mais da assunção agressiva de riscos e de tentativa e erro do que da educação formal, defende Taleb. Exalta os empreendedores que se arriscam e, mesmo fracassados, deveriam ser tratados como os soldados(não existe soldado fracassado). Critica a neomania, nossa ilusão de tentar prever o futuro, considerando os cisnes negros e o número de interações no sistema complexo em que vivemos, tendendo ao infinito e desmentindo sistematicamente nossas previsões.

Temos a ilusão que o mundo funciona graças ao planejamento, às pesquisas universitárias e ao financiamento burocrático, mas há provas convincentes, segundo ele, de que tudo isso é uma ilusão. 

A tecnologia é o resultado da antifragilidade, explorada por aqueles que assumem riscos e apreciam os erros, fazendo-os numerosos e pequenos, como preconizado no mundo das startups. Também na economia, é importante que cada empresa seja frágil para que a economia seja antifrágil, outra maneira de expressar a destruição criativa disseminada por Schumpeter. Não há estabilidade sem volatilidade, conclui Taleb.

Em paralelo ele introduz o conceito do fragilista, que confunde o desconhecido com o inexistente, que pensa que o que não vê não existe, ou o que não entende não existe. Fora da física e geralmente em domínios complexos, as razões por trás das coisas tendem a se tornar menos óbvias para nós, e ainda menos óbvias para o fragilista. 

Em suma, o fragilista é aquele que faz você envolver-se em políticas e ações, todas artificiais, nas quais os benefícios são pequenos e visíveis, e os efeitos colaterais são potencialmente graves e invisíveis. A essa atitude, ele contrapõe a opcionalidade, da sua experiência do mundo financeiro, onde pequenos riscos podem trazer grandes oportunidades, como forma de tornar-se antifrágil.

Dessa forma, ao longo do livro, Taleb procura mostrar como alcançar a antifragilidade com exemplos na medicina, na economia, nas famílias, no planejamento, nas finanças e na política.

Em um estilo muitas vezes demolidor e com tiradas divertidas, não alivia críticas à figuras conhecidas de todas as áreas. Leitura imperdível.

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Como você sabe se foi um ser humano que escreveu isso?

por Farhad Manjoo 

colunista de opinião NYT 29/07/2020 (tradução e adaptação por Evandro Milet)

As máquinas estão ganhando a capacidade de escrever e estão ficando terrivelmente boas nisso.

Eu realmente nunca me preocupei com o fato de os computadores estarem disputando o meu trabalho. Para dizer a verdade, muitas vezes eu rezo por isso. Quão melhor seria minha vida – quanto melhor seria a vida de meu editor, para não falar dos pobres leitores – se eu pudesse pedir a uma máquina onisciente que sugerisse a melhor maneira de iniciar esta coluna? Nunca me preocupei realmente que um computador possa tomar o meu trabalho, porque nunca parecia remotamente possível.  Um computador escrevendo uma coluna de jornal? Esse será “o” dia.

Bem, amigos, o dia está próximo. Este mês, o OpenAI, um laboratório de pesquisa de inteligência artificial com sede em São Francisco, começou a permitir acesso limitado a um software que é ao mesmo tempo incrível, assustador, humilhante e mais do que um pouco aterrorizante.

O novo software da OpenAI, chamado GPT-3, é de longe o mais poderoso “modelo de linguagem” já criado. Um modelo de linguagem é um sistema de inteligência artificial que foi treinado em uma enorme quantidade de textos; com muitos textos e bastante processamento a máquina começa a aprender conexões probabilísticas entre as palavras. Mais claramente: o GPT-3 pode ler e escrever. E nada mal.

Um software como GPT-3 pode ser extremamente útil. Máquinas que podem entender e responder a humanos em nosso próprio idioma podem criar assistentes digitais mais úteis, personagens de videogame mais realistas ou professores virtuais personalizados para o estilo de aprendizagem de cada aluno. Em vez de escrever código, um dia você vai poder criar software apenas dizendo às máquinas o que fazer.

A OpenAI concedeu a poucas centenas de desenvolvedores de software acesso ao GPT-3, e muitos vêm enchendo o Twitter nas últimas semanas com demonstrações de seus recursos surpreendentes, que variam do mundano ao sublime, até o possivelmente bastante perigoso.

Para perceber o perigo potencial, ajuda entender como o GPT-3 funciona. Os modelos de idiomas geralmente precisam ser treinados para usos específicos – um bot de serviço ao cliente usado por um varejista pode precisar ser ajustado com dados sobre produtos, enquanto um bot usado por uma companhia aérea precisaria aprender sobre voos. Mas o GPT-3 não precisa de muito treinamento extra. Dê ao GPT-3 um aviso em idioma natural – “Por meio deste eu renuncio” ou “Caro John, estou deixando você” – e o software preencherá o restante com texto assustadoramente próximo do que um humano produziria.

E não são respostas enlatadas. O GPT-3 é capaz de gerar prosa inteiramente original, coerente e, às vezes, até factual. E não apenas prosa – pode escrever poesia, diálogos, memes, código de computador e quem sabe mais o quê.

A flexibilidade do GPT-3 é um avanço importante. Matt Shumer, executivo-chefe de uma empresa chamada OthersideAI, está usando o GPT-3 para criar um serviço que responde ao e-mail em seu nome – você escreve a essência do que gostaria de dizer e o computador cria um email completo, diferenciado e educado com os pontos que você marcou.

Outra empresa, Latitude, está usando o GPT-3 para criar personagens realistas e interativos em jogos de aventura com texto. Funciona surpreendentemente bem – o software não é apenas coerente, mas também pode ser bastante criativo, surpreendente e até engraçado.

Porém, softwares como o GPT-3 aumentam a preocupação com o uso indevido assustador. Se os computadores puderem produzir grandes quantidades de texto humano, como poderemos distinguir humanos e máquinas? Em um trabalho de pesquisa detalhando o poder da GPT-3, seus criadores citam uma série de perigos, incluindo “desinformação, spam, phishing, redação de trabalhos acadêmicos fraudulentos e golpes em geral.

Existem outros problemas. Por ter sido treinado em textos encontrados on-line, é provável que o GPT-3 espelhe muitos preconceitos encontrados na sociedade. Como podemos garantir que o texto produzido não seja racista ou sexista? O GPT-3 também não é bom em diferenciar fatos da ficção. .

Para seu crédito, a OpenAI adotou muitas precauções. Por enquanto, a empresa está deixando apenas um pequeno número de pessoas usar o sistema e está examinando cada aplicativo produzido com ele. A empresa também proíbe o GPT-3 de se passar por humanos – ou seja, todo texto produzido pelo software deve divulgar que foi escrito por um bot. A OpenAI também convidou pesquisadores externos para estudar os vieses do sistema, na esperança de mitigá-los.

Essas precauções podem ser suficientes por enquanto. Mas o GPT-3 é tão bom em imitar a escrita humana que às vezes me dá calafrios. Daqui a pouco tempo, seu humilde correspondente poderá ser levado à aposentadoria por uma máquina – e talvez você até sinta minha falta quando eu partir.

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Aumento do uso de EPIs gera epidemia de lixo plástico pelo mundo

Aumento do uso de equipamentos de proteção contra o coronavírus gerou uma epidemia de lixo médico-hospitalar, que os governos não sabem como tratar

24/07/2020 Por Anna Gross — Financial Times, de Londres

Carmen Barrera pesca nas águas das Ilhas Canárias há quase uma década. Mas só nos últimos meses ela notou um grande número de luvas de borracha e outros itens de equipamentos de proteção individual (EPIs) que flutuam na água ou ficam presos em suas redes.

“Isso me preocupa muito”, disse Barrera ao “Financial Times”, de sua casa em Tenerife. “Desde que as pessoas começaram a usar luvas e máscaras, nós também começamos a vê-las no mar. O problema está em como as pessoas usam e descartam seu lixo.”

A produção de EPIs deu um salto nos últimos meses, pois prestadores de serviços de saúde têm comprado milhões de unidades para evitar a disseminação do coronavírus entre seus funcionários, e as pessoas passaram a usar máscaras e outros tipos de proteção para se resguardar melhor.

Mas, à medida que a emergência de saúde mundial passou a ocupar o centro das atenções, muitos acreditam que a luta para reduzir o lixo plástico foi deixada de lado por governos e consumidores.

“Os EPIs são a ponta de uma montanha de lixo plástico tóxico que ignoramos há anos”, disse Sian Sutherland, cofundador do A Plastic Planet, organização sem fins lucrativos que busca reduzir a dependência das pessoas do plástico.

Grande parte dos EPIs usados no mundo não é reutilizável e pode conter uma variedade de plásticos, de polipropileno e polietileno nas máscaras faciais e aventais até nitrilas, vinil e látex em luvas.

No entanto, há apenas algumas décadas quase todos os EPIs eram reutilizáveis, segundo Jodi Sherman, professora de Anestesiologia e Epidemiologia na Universidade de Yale. Ela explica que isso só mudou nos anos 1980, quando a indústria de equipamentos médicos descobriu o potencial lucrativo dos produtos descartáveis.

“Quanto mais coisas você joga fora, mais precisa comprar. Por isso, o fato de que as coisas não sejam duráveis é um modelo de negócios vantajoso”, disse Sherman.

Hoje, a vasta maioria dos EPIs é descartável, fabricada longe dos seus locais de uso e entregue no sistema “just in time”, para reduzir a necessidade de armazenamento e garantir que os suprimentos não passem da data de validade.

Pelas projeções da Organização Mundial da Saúde (OMS), o suprimento de EPIs precisaria aumentar em 40% ao mês para atender à demanda durante a pandemia, o que inclui uma estimativa de 89 milhões de máscaras, 76 milhões de pares de luvas e 1,6 milhão de óculos. A empresa de consultoria Frost & Sullivan previu que os Estados Unidos poderiam gerar o equivalente a um ano inteiro de resíduos médicos em apenas dois meses.

Mas só agora os governos começam a refletir sobre onde esses milhões de produtos vão acabar.

O Ministério da Saúde do Reino Unido admitiu que não é capaz de dizer como os 2 bilhões de unidades de EPIs que adquiriu serão descartados, mas informou que estava à procura de alternativas eficazes para os modelos não reutilizáveis.

Boa parte do lixo produzido na Europa é enviado para países como Indonésia e Turquia. Sutherland, do A Plastic Planet, chama isso de “o imperialismo do lixo”.

Em muitos países ocidentais os resíduos médicos perigosos costumam ser incinerados no local, para prevenir a transmissão de doenças infecciosas, num processo que pode liberar poluentes tóxicos.

“Fora queimá-los, não há nada que realmente possamos fazer. Eles foram projetado para serem descartados”, disse Sander Defruyt, chefe da equipe de plásticos da Ellen MacArthur Foundation, uma instituição de caridade.

Mas, conforme um número cada vez maior de pessoas comuns segue as orientações governamentais e usa equipamentos de proteção descartáveis, os EPIs também acabam nos fluxos de resíduos convencionais ou em centros de descarte a céu aberto.

De acordo com um relatório do World Wildlife Fund (WWF), mesmo que apenas 1% das máscaras seja descartado incorretamente, cerca de 10 milhões de unidades por mês acabarão no ambiente natural e poluirão rios e oceanos.

Para agravar o problema, as quarentenas por causa da covid-19 interromperam os sistemas de gestão de resíduos em todo o mundo e levaram a reduções drásticas no preço dos plásticos.

Mesmo antes da queda dos preços do petróleo neste ano, os preços dos plásticos mais comuns estavam nos seus níveis mais baixos em vários anos, em grande parte por causa do excesso de oferta. Os preços do polietileno de alta densidade despencaram quase pela metade desde o início de 2018, segundo a S&P Global Platts. Já os do polipropileno caíram em mais de um terço. E desde meados de 2019, o PET reciclado é mais caro do que seu equivalente bruto.

Nesse meio tempo, as políticas para restringir o uso de plásticos foram postas em compasso de espera. Vários governos adiaram a entrada em vigor de proibições de produtos descartáveis de plástico em meio aos temores em torno do contágio da covid-19, entre eles Reino Unido e Portugal.

Para especialistas, encontrar uma solução para o boom dos plásticos durante e após a pandemia exigirá um esforço conjunto de fabricantes e governos, para repensar e regular todo o ciclo de vida de produtos.

A Plastic Planet produz 1 milhão de máscaras protetoras sem plástico por semana, feitas de peças recicláveis e biodegradáveis, e as distribui por todo o mundo, inclusive em salões de beleza e restaurantes. 

Reutilizar os EPIs é outra opção. A professora Sherman, de Yale, diz que, no caso da maioria dos equipamentos médicos, não há evidências de que os pacientes estejam mais seguros com itens de uso único do que com reutilizáveis.

Como as ações dos governos e das empresas para cortar resíduos de EPIs foram limitadas nos últimos meses, ambientalistas afirmam que a busca por equipamentos recicláveis ou reutilizáveis é a melhor opção disponível para os consumidores que querem reduzir a sua pegada plástica.

Barrera, a pescadora, acredita que todos devem trabalhar juntos para que o mundo vire a maré do lixo plástico. “Populações e governos são os únicos que podem parar isso”, disse ela. “Precisamos optar por produtos mais ecológicos e sustentáveis e proibir o uso de plásticos descartáveis.”

https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/07/24/aumento-do-uso-de-epis-gera-epidemia-de-lixo-plastico-pelo-mundo.ghtml

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Esse algoritmo de Inteligência artificial não substitui médicos – melhora-os

Tom Simonite 17/07/2020 Wired – Tradução Evandro Milet

Um sistema de inteligência artificial superou os médicos ao detectar lesões na pele. Os resultados estão mudando a forma como uma escola treina dermatologistas.

O DERMATOLOGISTA HARALD KITTLER conta com mais de uma década de experiência  ensinando aos alunos da Universidade Médica de Viena como diagnosticar lesões na pele. Suas aulas neste outono incluirão uma dica que ele aprendeu apenas recentemente de uma fonte incomum: um algoritmo de inteligência artificial.

Essa lição teve origem em um concurso que Kittler ajudou a organizar, mostrando que os algoritmos de análise de imagem poderiam superar os especialistas humanos no diagnóstico de algumas manchas na pele. Depois de digerir 10.000 imagens rotuladas pelos médicos, os sistemas puderam distinguir entre diferentes tipos de lesões cancerígenas e benignas em novas imagens. Uma categoria em que superaram a precisão humana foi para manchas escamosas conhecidas como queratoses actínicas pigmentadas. A engenharia reversa, um algoritmo treinado da mesma forma para avaliar como chegou a suas conclusões, mostrou que, ao diagnosticar essas lesões, o sistema prestou mais atenção do que o habitual à pele ao redor de uma mancha.

Kittler ficou inicialmente surpreso, mas chegou a ver sabedoria nesse padrão. O algoritmo pode detectar a exposição ao sol na pele circundante, um fator conhecido nessas lesões. Em janeiro, ele e seus colegas pediram a uma turma de estudantes de medicina do quarto ano que pensassem como o algoritmo e procurassem por danos causados pelo sol.

A precisão dos estudantes no diagnóstico de queratoses actínicas pigmentadas melhorou em mais de um terço em um teste em que eles tiveram que identificar vários tipos de lesões de pele. “A maioria das pessoas pensa que a IA age em um mundo diferente que não pode ser entendido pelos seres humanos”, diz Kittler. “Nosso pequeno experimento mostra que a IA pode ampliar nosso ponto de vista e nos ajudar a fazer novas conexões”.

O experimento vienense foi parte de um estudo mais amplo realizado por Kittler e mais de uma dúzia de outros explorando como os médicos podem colaborar com sistemas de IA que analisam imagens médicas. Desde 2017, uma série de estudos descobriu que os modelos de aprendizado de máquina superam os dermatologistas em competições frente a frente. Isso inspirou especulações de que os especialistas em pele podem ser totalmente substituídos por uma geração do AutoDerm 3000s

“As chances dessas coisas nos substituírem são muito baixas, infelizmente. A colaboração é o único caminho a seguir.

Philipp Tschandl, professor assistente de dermatologia da Universidade Médica de Viena que trabalhou no novo estudo com Kittler e outros, diz que é hora de reformular a conversa: e se algoritmos e médicos fossem colegas e não concorrentes?

Os especialistas em pele planejam tratamentos, sintetizam dados díspares sobre um paciente e constroem relacionamentos além de observar as verrugas, diz ele. Os computadores não estão perto de conseguir fazer tudo isso. “As chances dessas coisas nos substituírem são muito baixas, infelizmente”, diz ele. “A colaboração é o único caminho a seguir.”

Operadores de oficinas de pintura, armazéns e centrais de atendimento chegaram à mesma conclusão. Em vez de substituir os humanos, eles empregam máquinas ao lado das pessoas, para torná-las mais eficientes. As razões decorrem não apenas do sentimentalismo, mas porque muitas tarefas cotidianas são complexas demais para a tecnologia existente lidar sozinha.

Com isso em mente, os pesquisadores de dermatologia testaram três maneiras pelas quais os médicos poderiam obter ajuda de um algoritmo de análise de imagem que superava os seres humanos no diagnóstico de lesões na pele. Eles treinaram o sistema com milhares de imagens de sete tipos de lesões de pele rotuladas por dermatologistas, incluindo melanomas malignos e verrugas benignas.

Um dos projetos para colocar o poder desse algoritmo nas mãos de um médico mostrou uma lista de diagnósticos classificados por probabilidade quando o médico examinou uma nova imagem de uma lesão na pele. Outro exibia apenas uma probabilidade de que a lesão fosse maligna, mais próxima da visão de um sistema que poderia substituir um médico. Um terceiro recuperou imagens previamente diagnosticadas que o algoritmo julgava semelhantes, para fornecer ao médico alguns pontos de referência.

Testes com mais de 300 médicos descobriram que eles eram mais precisos ao usar a lista classificada de diagnósticos. Sua taxa de acerto subiu 13 pontos percentuais. As outras duas abordagens não melhoraram a precisão dos médicos. E nem todos os médicos obtiveram o mesmo benefício.

Médicos menos experientes, como residentes, mudavam seu diagnóstico com base nos conselhos de IA com mais frequência e costumavam ter razão em fazê-lo. Médicos com muita experiência, como dermatologistas certificados, mudavam seus diagnósticos com base no resultado do software com muito menos frequência. Esses médicos experientes se beneficiaram apenas quando relataram menos confiança, e mesmo assim o benefício foi marginal.

Tschandl diz que isso sugere que as ferramentas de dermatologia da IA podem ser mais bem direcionadas como assistentes de especialistas em treinamento ou de médicos de clínica geral que não trabalham intensivamente na área. “Se você faz isso há mais de 10 anos, não precisa usá-lo ou não deveria, porque isso pode levar você a coisas erradas”, diz ele. Em alguns casos, médicos experientes negaram um diagnóstico correto trocando incorretamente quando o algoritmo estava errado. 

Essas descobertas e o experimento na aula de dermatologia de Kittler mostram como os pesquisadores podem desenvolver a IA que acrescenta em vez de eliminar os médicos. Sancy Leachman, especialista em melanoma e professora de dermatologia da Oregon Health & Science University, espera ver mais desses estudos – e não, ela diz, porque teme ser substituída.

“Não se trata de quem faz o trabalho, humano ou máquina”, diz ela. “A questão é como você usa com sucesso o melhor dos dois mundos para obter os melhores resultados”. A IA que ajuda os clínicos gerais a pegar mais melanomas ou outros cânceres de pele pode salvar muitas vidas, diz ela, porque os cânceres de pele são altamente tratáveis se detectados precocemente. Leachman acrescenta que provavelmente será mais fácil convencer os médicos a adotar a tecnologia projetada para aprimorar e desenvolver seu trabalho do que substituí-lo.

O novo estudo também incluiu um experimento que destaca os perigos potenciais de adotar essa tecnologia. Ele testou o que aconteceu quando os médicos trabalharam com uma versão do algoritmo preparada para dar conselhos incorretos, simulando software defeituoso. Clínicos de todos os níveis de experiência mostraram-se vulneráveis a serem enganados.

“Minha esperança era que os médicos fossem firmes, mas vimos a confiança que eles tinham no modelo de IA voltada contra eles”, diz Tschandl. Ele não sabe ao certo quais são as respostas, mas diz que trabalhos futuros sobre IA médica precisam considerar como ajudar os médicos a decidir quando desconfiar do que o computador lhes diz.

https://www.wired.com/story/algorithm-doesnt-replace-doctors-makes-them-better/

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Bioeconomia – Caminhos para o Brasil no Pós-Pandemia

Paulo Hartung

Paulo Hartung é economista, presidente-executivo da Ibá (Indústria Brasileira de Árvores), membro do Conselho do Todos Pela Educação, ex-governador do Estado do Espírito Santo (2003-2010/2015-2018)

A Covid-19 vem há meses dizimando milhares de vidas e arrastando economias ao redor do planeta para o abismo da recessão. A rapidez do contágio e a letalidade foram surpreendentes, mas essa era uma catástrofe anunciada, ainda que não soubéssemos antever seu gatilho explosivo.

O mundo já dava sinais de que era preciso reinventar nossa relação com a natureza. Entre esses alertas estão as mudanças climáticas e suas graves consequências para a agricultura e a vida urbana, a extinção de espécies animais, a poluição extrema dos rios e o sofrimento de animais marinhos em mares invadidos pelo lixo.

Alertas ignorados, catástrofe efetivada. A pandemia é a crise mais desafiadora já enfrentada pelas atuais gerações. No Brasil, ainda fomos impactados em um período de fragilidades econômica e social, com dívida elevada e desemprego em alta.

E, se já não bastasse esse cenário de tragédia, cujos elementos se potencializam em seus efeitos nefastos, a falta de liderança fez com que o País não se preparasse da maneira adequada, desperdiçando o tempo que tinha até que a pandemia se instalasse por aqui. Isso sem falar na troca e até ausência de ministros em meio a este momento devastador.

O momento é grave. É impositivo que tratemos do emergencial, que é salvar vidas humanas, manter os empregos e assegurar continuidade à atividade econômica. Mas, além de fôlego para enfrentarmos nossas urgências, precisamos olhar para frente e mirar o futuro pós-pandemia. É necessário conjugar esforços para que o Brasil tenha tração para a retomada.

Neste caminho, não há atalhos. É necessário cumprir uma agenda urgente. A reforma tributária e a modernização do Estado são imprescindíveis. A digitalização plena dos procedimentos governamentais se mostrou inadiável diante da incapacidade de se efetivar a ajuda emergencial nesta pandemia. Conhecer e conectar-se com os cidadãos, desburocratizar processos… Enfim, é preciso tornar as máquinas governativas contemporâneas do século XXI.

Um avanço importante foi a aprovação pelo Senado do novo marco regulatório do saneamento básico, que dará segurança jurídica e atrairá investimentos do setor privado. Já há movimentação de investidores de olho no aporte necessário, que gira em torno de R$500 bilhões e R$700 bilhões para atingir a meta de universalização de água e esgoto tratados no Brasil até 2033. Além de ser um tema crucial, devido aos vergonhosos déficits sanitários e ambientais que atingem milhões de brasileiros, o assunto ganha relevância pelo gigantesco potencial de geração de emprego e renda. Ainda faltam etapas, mas foi um grande passo, após anos de discussão.

O fosso da desigualdade socioeconômica igualmente exige e merece atenção absolutamente prioritária. Educação de qualidade acessível a todos e unificação de políticas de inclusão social produtiva, contemplando um programa unificado de transferência de renda focado nos pobres, são ações decisivas nesta frente.

Para além dessa agenda estruturante, historicamente adiada, mas que se tornou ainda mais impositiva por causa deste presente dramático, também precisamos estar atentos às demandas e oportunidades que se colocam pela contingência atual, tendo em vista uma reflexão sobre qual mundo queremos legar para as gerações futuras.

Um dos caminhos é a bioeconomia

O mundo, neste momento, passa por um grande debate sobre como se dará a recuperação da economia no pós-crise e aponta um caminho convergente e muito suscetível a um natural protagonismo brasileiro, a bioeconomia.

Recentemente, o príncipe Charles, do Reino Unido, afirmou que o coronavírus trouxe uma oportunidade para reiniciarmos a economia, de modo a devolver à natureza aquilo que ela nos dá. Angela Merkel, chanceler alemã, destacou que irá investir trilhões para recuperar a economia em uma direção verde. O presidente francês, Emmanuel Macron, disse que é necessário reconstruir uma economia forte e que proteja o meio ambiente.

O Green Deal, ou Plano Verde, pactuado pela União Europeia, propõe ambiciosamente chegar à neutralidade de carbono até 2050. O bloco também lançou o selo verde para priorizar investimentos em atividades sustentáveis, com os objetivos de reduzir mudanças climáticas, utilizar recursos hídricos sustentavelmente, incentivar a economia circular, proteger e restaurar a biodiversidade e prevenir e controlar a poluição.

O mercado de carbono é mais um exemplo. A criação desse mercado, em caráter global, é uma das premissas do Acordo de Paris, do qual o Brasil é signatário. Além dessa negociação, há várias iniciativas para alguma forma de precificação de carbono, incluindo União Europeia, China e o estado norte-americano da Califórnia. Essas ações movimentaram US$ 82 bilhões em 2018. No Brasil, existe um estudo em andamento, PMR – Partnership for Market Readiness, numa parceria entre o Ministério da Economia e o Banco Mundial.

O caminho está ficando claro e a sustentabilidade será tema fundamental nas relações internacionais no pós-pandemia. Segundo a OCDE, a contribuição mundial da biotecnologia, entre saúde, indústria e produção primária, será na ordem de US$ 1 trilhão ao ano.

No Brasil, temos uma riqueza ambiental quase sem paralelo, com diferentes tipos de vegetação, clima e solo. Como bem opinou Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo  (USP), o potencial não está no que a gente vê, mas no que a gente ainda não conhece. E o Brasil, país com maior biodiversidade do mundo e com 66% de seu território coberto por mata nativa, é uma mina de ouro para o desenvolvimento sustentável.

Cabe a nós, sem levar a discussão para o lado ideológico, saber transformar essa potencialidade em oportunidades de gerar empregos, produtos de valor agregado, com origem ambientalmente correta, procedência e qualidade, que trarão divisas ao País e levarão renda a comunidades afastadas dos grandes centros.

Amazônia, riqueza natural e humana

A floresta em pé tem um valor que ainda desconhecemos por completo. Além de todo o serviço ambiental prestado ao planeta, como captação de CO2, regime de chuvas, conservação da biodiversidade, entre tantos outros benefícios, há incontáveis potencialidades que se transformam em riquezas, sem agressão à natureza. Mas, é preciso visão, estudo e políticas públicas que estimulem.

Países como a Finlândia e Holanda, que investem fortemente em biotecnologia, avançam em ciência, geração de novos empregos, renda e diversificação de sua atividade econômica. Não à toa, são apontados como referências. O governo finlandês, por exemplo, tem em sua estratégia chegar aos 100 bilhões de euros em negócios decorrentes da bioeconomia até 2050.

No Brasil, temos um ativo em mãos chamado Amazônia. Na região, vivem cerca de 25 milhões de pessoas que, se incentivadas e capacitadas, poderiam produzir a partir da floresta. Isto garantiria renda para milhares de famílias, muitas delas que vivem abaixo da linha da pobreza, estimularia investimentos na região, inclusive em pesquisas, agregaria valor aos produtos, pois já sairiam com a chancela de origem ambientalmente correta e protegeria a natureza, uma vez que o manejo seria feito da maneira adequada.

Com a chegada da Covid-19 e o consequente aumento do desemprego, o estímulo à bioeconomia torna-se um elemento ainda mais importante para a região – conservação aliada à produtividade, renda e movimentação na atividade econômica.

A integração sustentável entre ser humano e floresta é a forma mais direta de proteger o meio ambiente. Além do cuidado, a presença de pessoas trabalhando legalmente intimida ações criminosas, como desmatamento, queimadas, tráfico de animais, entre outras atitudes que ali acontecem por falta de fiscalização.

O futuro é agora. As empresas estão de olho e aportando capital em sustentabilidade, que já não é mais um pilar isolado, mas uma transversalidade na estratégia das companhias. Recentemente, a Natura, que também tem forte atuação na Amazônia, anunciou a destinação de R$ 800 milhões para seu plano de sustentabilidade. A Unilever investirá 1 bilhão de euros em um fundo dedicado a programas de mudanças climáticas e redução de emissões de gases de efeito estufa até 2039. Estes são movimentos arrojados, globais, que demonstram que apostar em uma economia verde, em que o meio ambiente não será mais esgotado, mas sim respeitado, é estar do lado certo da história.

Há espelhos dentro do próprio Brasil

Talvez um dos mais conhecidos e clássicos exemplos brasileiros de sucesso em bioeconomia seja o biocombustível, no qual o País é pioneiro. O etanol nacional é referência para o mundo. Segundo a Unica – União da Indústria de Cana-de-Açúcar –, o Brasil é o segundo maior produtor global e atingiu safra recorde em 2019/2020, com 35,58 bilhões de litros produzidos, dos quais 33,96 bilhões de litros vêm da cana-de-açúcar, e o restante do milho. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), 18% dos combustíveis consumidos aqui já são renováveis.

E já há avanços. A Raízen materializou o etanol de segunda geração, tornando-se uma das poucas empresas do mundo a produzi-lo estavelmente em escala comercial, em Piracicaba (SP). Chamado de etanol 2G, este é um combustível obtido pela fermentação controlada e posterior destilação de resíduos vegetais, como o bagaço da cana-de-açúcar. Esse novo processo de produção de etanol consegue reduzir a formação de dejetos e aumenta a eficiência da empresa.

O RenovaBio, uma política pública criada para incentivar biocombustíveis de qualquer tipo, tem uma boa base, que é incentivar a descarbonização, certificar a produção dos biocombustíveis e gerar créditos de carbono (CBIOs). No entanto, o programa ainda precisa deslanchar.

Outro exemplo de que se é possível conservar, produzir, gerar renda e trazer divisas ao País com produtos ambientalmente corretos é o setor de árvores cultivadas.

Presente principalmente no interior dos Estados, essa agroindústria leva desenvolvimento a regiões antes socialmente deprimidas, movimentando as áreas em que atua. Atualmente, são mais de mil municípios sob zona de influência do setor e 3,8 milhões de empregos diretos e indiretos, além do efeito renda.

O setor, que possui 7,8 milhões de hectares de florestas cultivadas para fins industriais, comumente atua em regiões antes degradadas pela ação humana. Ao longo dos anos, o investimento em capacitação, tecnologia e ciência, além de alavancar a produtividade, permitiu melhorias no manejo, que contribuem para fertilidade do solo, aumento de disponibilidade hídrica, entre outros serviços ambientais prestados pelas árvores cultivadas. Elas ainda são responsáveis pelo estoque médio de 1,7 bilhão de CO2eq, absorvendo mais CO2 do que toda a indústria produz em um ano.

O processo fabril desse segmento também é cuidadosamente pensado para reduzir seus impactos. No uso de água, por exemplo, a indústria de celulose reduziu a captação em 88% desde 1970. Além disso, deste total, 80% dos recursos hídricos retornam ao seu ponto de origem tratados, muitas vezes em condições melhores do que quando captados, e 19,7% vão para a atmosfera por meio da evaporação. Ou seja, apenas 0,3% fica no produto. Já na questão energética, as fábricas são responsáveis pela geração de 73% de toda energia que consomem, muitas delas, inclusive, com capacidade de venda do excedente para a rede.

O resultado desta equação são produtos renováveis, recicláveis e biodegradáveis, presentes no dia a dia de todos, como papel, filtro para café, fraldas infantis e de idosos, pisos laminados e móveis formados por painéis de madeira (MDF e MDP). Até mesmo no combate à Covid-19 seus produtos se mostraram fundamentais como embalagens de papel, que fizeram alimentos e medicamentos chegarem seguros para todos; papel higiênico, papel toalha e lenços para higiene; assim como EPIs de saúde, a exemplo das máscaras cirúrgicas. Todos eles, com carbono estocado também.

Além disso, a indústria investe muito em pesquisa e tecnologia para novos usos e substituição de materiais de origem fóssil. Viscose a partir da celulose solúvel para tecido já é uma realidade. Em breve, uma nova fibra têxtil a partir da celulose microfibrilada, até então chamada de Staple Fiber, chegará ao mercado para revolucionar o segmento. Bio-óleos, biocombustíveis, nanocelulose e nanocristais, que podem ser utilizados na indústria de alimentos, automobilística, de cosméticos e medicamentos, são outros exemplos.

Soma-se a tudo isso, os 5,6 milhões de hectares que o setor conserva entre Reservas Legais (RLs), Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Particulares de Patrimônio Natural (RPPNs), uma área que é maior do que o território do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, nessas áreas conservadas de matas nativas, são mais 2,5 milhões de CO2eq estocados. Trata-se de uma indústria que cuida do processo produtivo e preserva acima do que a lei prevê. Nesse sentido, também auxilia o Brasil a cumprir suas metas em acordos internacionais, como o Acordo de Paris.

Florestas e reputação

Desde a Rio 92, o País trabalhou para reverter a imagem das décadas de 1970 e 1980 e construir uma reputação ambiental internacional de muito respeito. Mas, os últimos acontecimentos têm arranhado a imagem do Brasil. Não só as queimadas de 2019 ou o aumento do desmatamento, mas também determinados posicionamentos oficiais, falas inoportunas ou fora de contexto prejudicam até mesmo acordos internacionais. O parlamento holandês, por exemplo, mostrou-se contra o acordo UE-Mercosul devido à política ambiental brasileira.

A realidade é que o Brasil tem se comunicado mal nos últimos anos. Construímos um sólido Código Florestal, que, pela primeira, vez colocou na mesma mesa academia, setor privado, poder público e sociedade civil. Dali nasceu uma das mais rígidas legislações ambientais do mundo.

Temos um agronegócio comprometido com o meio ambiente, que compreende a importância da natureza para sua produção, investe em tecnologia e ciência para fazer mais com menos, busca soluções para defensivos agrícolas biológicos, produzindo itens essenciais e alimentos que abastecem os brasileiros e o mundo.

A sociedade é cada vez mais consciente e cobra de seus governantes políticas públicas para preservar o meio ambiente. Em 2019, vimos jovens nas ruas se manifestando para que atitudes fossem tomadas contra as mudanças climáticas. É o futuro instando as atuais gerações para que encontrem o rumo correto.

Precisamos ter a capacidade de demonstrar isso ao mundo. Vamos contar nossa história para que, por exemplo, os europeus compreendam que a sociedade brasileira cultiva valores comuns, partilha com eles valores idênticos e que luta pelas mesmas causas. Precisamos narrar nossa trajetória de uma nação capaz, preocupada com nossa biodiversidade, nossas riquezas naturais, que mira um futuro sustentável, em que homem e natureza conviverão em harmonia.

Enfim, temos muito a fazer. Mas, seja para cuidar da travessia da pandemia, com olhar prioritário ao cuidado com a vida e a produção, seja para executar concomitantemente uma agenda essencial de desenvolvimento socioeconômico, com vistas ao hoje e ao amanhã, é preciso que a liderança nacional assuma seu papel.

É preciso também que todas as institucionalidades, os setores produtivos, todas as cidadãs e cidadãos se engajem, no âmbito de suas possibilidade e deveres, para manter o Brasil de pé e com olhar firme no horizonte. Afinal, é sabido que toda crise tem começo, meio e fim.

Mas, se não atuarmos em sintonia e comunhão a favor de propósitos nacionais maiores, chegaremos ao pós-pandemia de joelhos, sufocando demandas e oportunidades de uma nação potencialmente gigante, mas que ainda está muito aquém do que poderia ser, especialmente por questões estruturais que não podemos mais suportar, dramaticamente agravadas por este momento trágico. É tempo de agir. Nosso presente e nosso futuro não podem mais esperar.

Caminhos para o Brasil no Pós-Pandemia

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A Revolução da Transformação Digital

por Evandro Milet – uma versão reduzida desse artigo foi publicada no Jornal A Gazeta

Na primeira revolução industrial, as fontes fixas de energia, primeiro as rodas d’água e depois o carvão, definiam a localização, o formato, o tamanho, a capacidade, o projeto das fábricas e os métodos de trabalho. A eletrificação no final do século XIX mudou tudo, mas as fábricas demoraram a perceber a extensão das mudanças. Coube às novas startups de geração de energia elétrica da época pregar a inovação e até emprestar motores elétricos para demonstrar as novas tecnologias.

O mesmo acontece agora com a transformação digital(TD) que tem a ver com estratégia, reimaginação e reinvenção do core business e não só com automação, robôs, IA ou IoT. O conceito é mais amplo que Indústria 4.0 e se aplica não só em empresas, mas também em governos, com as adaptações específicas de termos.

A TD exige uma visão holística da estratégia de negócios em 5 domínios: clientes, competição, dados, inovação e valor, bem retratadas no livro Transformação Digital de David L. Rogers.

No primeiro domínio o importante era atingir, com um produto e comunicação o máximo de clientes possível. As ferramentas digitais mudaram como os clientes descobrem, avaliam, compram e usam os produtos, se influenciando em redes que constroem e destroem marcas e reputações. O marketing digital criou uma gama enorme de ferramentas para captar e fidelizar os clientes.

O segundo domínio da TD é a competição. Fronteiras setoriais fluidas trazem concorrentes de outros setores, obrigam concorrentes a cooperar, a desintermediação faz parceiros de longa data virarem concorrentes e as plataformas criam um modelo de negócios novo aproximando empresas e clientes. Mas surgem também novas formas de intermediação como, por exemplo, a parceria do Google com órgãos de imprensa para divulgação de reportagens.

O terceiro domínio são os dados que eram parte dos processos de negócios – fabricação, operações, vendas e marketing, e usados para previsões, avaliações e tomadas de decisões. As fontes se multiplicaram, com as mídias sociais, os dispositivos móveis e os sensores gerando uma enxurrada de dados, permitindo novas previsões, um conhecimento profundo dos clientes, a descoberta de padrões inesperados e novas fontes de valor. Novas profissões, como cientistas e engenheiros de dados, são criadas para organizar e aproveitar essa nova fonte de valor.

O quarto domínio é a inovação, onde a grande novidade é a possibilidade de experimentação rápida usada não só pelas startups, que permitem feedback do mercado desde o início do processo de inovação e sempre, em inovação constante. Também a inovação aberta, onde as empresas vão buscar externamente soluções para suas dores e desafios, cresceu e se espalhou como tendência.

O quinto domínio é a proposta de valor, antes duradoura ou quase constante e agora tendo que mudar sempre para acompanhar as mudanças rápidas dos próprios clientes, assediados por novos concorrentes, vindos muitas vezes de outros setores.

Enfim, a nova realidade: ou a empresa faz sua transformação digital, nos seus vários domínios, ou estará fora do mercado, como tem sistematicamente acontecido no mundo empresarial. 

https://link.estadao.com.br/noticias/inovacao,quarenteners-as-startups-lancadas-em-meio-ao-isolamento-social,70003371742

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