Incompatibilidade do conhecimento


Inovação tende a seguir preferências do Vale do Silício, e não necessidades locais

Por Dani Rodrik – Valor – 13/02/2023

O conhecimento é a chave para a prosperidade econômica. Tecnologia, inovação e know-how vêm do aprendizado de novas maneiras de produzir os bens e serviços que nos enriquecem. O conhecimento também é o arquétipo do “bem público”: novas ideias podem beneficiar a todos; e a menos que governos ou monopólios restrinjam sua disseminação, o uso não diminui a disponibilidade. Isso é especialmente importante para os países pobres, porque significa que eles não precisam reinventar a roda. Eles podem simplesmente adotar tecnologias e métodos criados por países mais ricos para impulsionar o próprio desenvolvimento econômico.

Embora economistas e formuladores de políticas há muito apreciem a importância econômica do conhecimento, eles não prestaram atenção suficiente às condições que o tornam útil. O contexto importa: qualquer incompatibilidade entre as condições em que as ideias são geradas e as especificidades do ambiente onde são aplicadas pode reduzir significativamente o valor da aquisição de conhecimento.

Por exemplo, o milho é cultivado em todo o mundo, mas está sujeito a diferentes ameaças ambientais, dependendo da ecologia local. Os esforços de pesquisa e desenvolvimento naturalmente se concentraram no desenvolvimento de resistência às pragas mais comuns na América do Norte e na Europa. Como resultado, milhares de patentes de biotecnologia são voltadas para o verme do milho europeu, mas apenas cinco patentes exclusivas são para inovações que protegem contra a broca do caule do milho, que afeta predominantemente a África Subsaariana.

O chatbot que substitui trabalhadores aumenta os retornos para engenheiros de IA e donos de empresas, ao mesmo tempo em que elimina trabalhadores com educação não universitária. O impacto é ampliado onde a mão de obra barata é a única vantagem comparativa

Tendo estudado esses e muitos outros exemplos, os economistas Jacob Moscona e Karthik Sastry, da Universidade de Harvard, argumentam que a inadequação de tecnologias desenvolvidas em economias avançadas pode representar um significativo obstáculo ao crescimento da produtividade agrícola em áreas de baixa renda. De acordo com sua análise, a incompatibilidade tecnológica em pragas e patógenos específicos de culturas pode ser sozinha responsável por 15% da disparidade global na produtividade agrícola.

Em um recente painel de debates organizado pela Associação Econômica Internacional, Moscona e outros especialistas forneceram uma ampla gama de ilustrações de tecnologias inadequadas em uso. Mireille Kamariza, bioengenheira da UCLA, descreveu como o desenvolvimento de tecnologias de diagnóstico para tuberculose e outras doenças infecciosas que afetam principalmente países de baixa renda ficou muito atrás das tecnologias de diagnóstico para doenças de países ricos.

Quando a covid-19 atingiu os países ricos, centenas de testes de diagnóstico ficaram disponíveis em poucos meses. Em contrapartida, demorou mais de um século para alcançar um progresso comparável em relação à tuberculose. Além disso, as técnicas avançadas de diagnóstico de tuberculose ainda dependem de técnicos treinados e um constante fornecimento de eletricidade, que podem não estar disponíveis em ambientes de baixa renda.

A incompatibilidade também pode ocorrer dentro dos países quando as tecnologias adaptadas aos interesses de determinados grupos são implantadas de forma mais ampla. A automação e as tecnologias digitais, por exemplo, podem ser inadequadas se produzirem efeitos indesejáveis para muitos trabalhadores. Como observa Anton Korinek, da Universidade da Virginia, todas as inovações têm dois gumes: elas podem aumentar a produtividade no agregado, mas também podem gerar agudos efeitos redistributivos que favorecem os proprietários do capital em detrimento dos trabalhadores.

E quando os ganhos gerais de produtividade não são muito grandes, eles podem ser facilmente superados (de uma perspectiva social) pelos efeitos redistributivos negativos – um fenômeno que os economistas Daron Acemoglu e Pascual Restrepo chamam de inovação “mais ou menos”.

Os robôs fornecem o exemplo mais claro dessa mudança adversa contra os trabalhadores, e a inteligência artificial está expandindo a gama de domínios onde os conflitos distributivos podem se tornar significativos. Como aponta Korinek, o software chatbot que substitui trabalhadores humanos aumenta os retornos para engenheiros de IA e proprietários de empresas, ao mesmo tempo em que substitui trabalhadores com educação não universitária. O impacto é ampliado nos países em desenvolvimento, onde a mão de obra barata é a única fonte de vantagem comparativa.

Além disso, o conhecimento está embutido não apenas em sementes ou softwares, mas também em normas culturais. No mesmo painel da IEA, o economista Nathan Nunn falou sobre um tipo temporal diferente de incompatibilidade, em que conhecimentos e práticas que eram apropriados para uma sociedade em um determinado momento podem se tornar disfuncionais posteriormente. As tradições culturais transmitem conhecimentos úteis às gerações futuras. Rituais religiosos, por exemplo, podem ajudar a coordenar o plantio, e técnicas específicas de culinária transmitidas pelos mais velhos de uma família podem proteger contra toxinas alimentares. Mas como as normas culturais evoluem lentamente, mudanças rápidas na sociedade podem produzir um “descompasso evolutivo”.

Baseando-se em seu trabalho com Leonard Wantchekon, Nunn dá o exemplo da experiência traumática da África com a escravidão transcontinental. As comunidades na África que tiveram contato mais extenso com traficantes de escravos desenvolveram uma profunda desconfiança em relação a forasteiros, deixando-os com uma inclinação cultural que é contraproducente para o desenvolvimento de uma florescente economia de mercado no mundo de hoje. Da mesma forma, a aversão dos americanos à redistribuição parece refletir o alto grau de mobilidade econômica do país no passado, e não a realidade atual.

Quer assumam a forma de tecnologias inadequadas ou práticas culturais, essas incompatibilidades precisam ser abordadas se o conhecimento for beneficiar uma sociedade. Uma estratégia é a conscientização. Foi assim que o movimento ambientalista ajudou a desviar a demanda do consumidor dos combustíveis fósseis e mobilizar apoio para o desenvolvimento de energias renováveis. Um movimento semelhante de “tecnologia para trabalhadores” poderia redirecionar a inovação para uma direção mais favorável ao trabalho.

Aumentar a voz das relevantes partes interessadas – como trabalhadores ou países pobres – nas decisões sobre inovação e tecnologia protegeria contra a adoção de tecnologias inadequadas. As políticas públicas também são cruciais. A Revolução Verde no século 20 foi motivada pelo reconhecimento explícito de que aumentar a produtividade agrícola em países de baixa renda exigiria o desenvolvimento de variedades de sementes de alto rendimento adequadas a ambientes tropicais. Embora nos falte um esforço multilateral semelhante para fechar as lacunas tecnológicas globais atualmente, Moscona aponta para vários países de renda média (Índia, Brasil, África do Sul) que têm a capacidade de desenvolver tecnologias mais adequadas às economias em desenvolvimento.

Mas mesmo nesses países, a inovação tende a seguir as normas e preferências do Vale do Silício, e não as necessidades locais. Tanto formuladores de políticas quanto inovadores deveriam lembrar que não é o conhecimento, mas sim o conhecimento útil que nos capacita. (Tradução de Anna Maria Dalle Luche)

Dani Rodrik, professor de Economia Política Internacional na Escola de Governo John F. Kennedy da Universidade de Harvard, é presidente da Associação Econômica Internacional. Copyright: Project Syndicate, 2023. http://www.project-syndicate.org

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/incompatibilidade-do-conhecimento.ghtml

Se você tiver interesse e ainda não estiver inscrito para receber diariamente as postagens de O Novo Normal, basta clicar no link: https://chat.whatsapp.com/BrKMDzP2KP52ExU8rOIB3s(14) para WhatsApp ou https://t.me/joinchat/SS-ZohzFUUv10nopMVTs-w  para Telegram. Este é um grupo restrito para postagens diárias de Evandro Milet. Além dos artigos neste blog, outros artigos de Evandro Milet com outras temáticas, publicados nos fins de semana no Portal ES360, encontram-se em http://evandromilet.com.br/

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: