Como experimentar o que acontece ao redor quando nossos olhos estão sempre voltados para a tela do celular?
Por Marcela Marcos — Para o Valor, de São Paulo 07/05/2022
“Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.” Este trecho de uma crônica de João do Rio, publicada originalmente em 1908, praticamente resume a ideia do próprio livro em que se encontra: “A alma encantadora das ruas”.
O autor, que tinha o hábito de perambular pelas vias do Rio de Janeiro e fazer uma espécie de “poesia do asfalto”, ficou conhecido como um “flâneur” brasileiro. O termo em francês tem sinônimos como “vadio”, “caminhante”, “errante”. É justamente a arte de ser não apenas espectador do que acontece na rua, mas de se integrar à paisagem urbana; de ser a própria cidade.
O hábito está na essência dos cronistas, por exemplo. Mas, na era da informação, em que o cotidiano é atravessado pela tecnologia, ainda é possível “flanar”?
Para o jornalista e escritor Xico Sá, entusiasta da “flânerie”, a prática, que já estava ameaçada pelos aparelhos celulares, levou um golpe adicional durante a pandemia. “Insistimos em ter a rua no horizonte, mas estamos bastante prejudicados a essa altura. O simples fato de checar mensagens enquanto caminhamos já muda a arte de flanar, que é estar totalmente entregue à observação mundana. O [escritor Honoré de] Balzac dizia que o ‘flâneur’ faz uma espécie de gastronomia do olhar, experimentando o movimento das esquinas, os bondes.”
Que o diga o poeta francês Charles Baudelaire, que definia o “flâneur” como alguém que anda pela cidade a fim, mesmo, de experimentá-la. Se é verdade que estamos mais atentos ao que acontece nas telas do que à vida passando fora delas, o isolamento social parece ter contribuído para aprofundar esse fenômeno. As lentes do cronista precisaram de ajuste.
“Lembro que, nos primeiros dias da pandemia, estava com algumas encomendas de crônica para atender e fiquei bloqueadíssimo porque perdi a calçada, o café numa esquina. Esse período tirou de nós nossa grande pauta”, conta o jornalista, que emenda: “Precisei escrever sobre o gato dentro de casa e muito mais sobre o que eu via da janela do que o que eu via da esquina.”
A doutora em geografia Maria Ester Viegas diz que o efeito da pandemia não é duradouro. “Os velhos hábitos voltam muito rapidamente. A interdição durou pouco tempo para que pudesse afetar práticas que são construídas durante toda uma vida, de pessoas, de gerações. No final do dia, já é possível retomar uma cerveja com amigos, um café no terraço, ou tomar uma água de coco na praia”, observa Viegas, que é coautora de uma pesquisa acadêmica que discute a “flanérie” em tempos pandêmicos.
Em uma perspectiva filosófica, é possível enxergar um caráter perene na figura do caminhante. “Diante das transformações constantes da vida nas grandes cidades, o ‘flâneur’ está ali para mostrar algo que permanece, algo que, pela fruição estética da vida, pode provocar a sensação de infinito”, explica Anderson Zanetti, formado em filosofia e docente da Faculdade Sesi-SP de Educação.
Essa infinidade, entretanto, é desafiada pela internet. “As movimentações, odores, texturas, ruídos e paisagens devem ser percebidas, sentidas e vividas no momento dos acontecimentos, de forma direta e única. No caso do ambiente virtual, há a mediação da tela e possíveis edições e direcionamentos de câmeras, ou plataformas digitais, às quais o indivíduo está submetido. O espírito livre e rebelde do ‘flâneur’ não pode se realizar em um mundo virtual que busca administrar seuolhar, sua escuta e todas suas sensações”, diz Zanetti.
Até faria sentido imaginar um “‘flâneur’ cibernético”, se a navegação pela web fosse livre – o que, por si só, já é um contrassenso. “A capacidade de ‘navegar’ livremente pelos sites, em um processo exploratório, de descobertas e surpresas, foi colonizada por corporações como Google e Facebook, que levam seus usuários a ficarem presos a seus ‘jardins murados’, onde tudo deve ser transparente, compartilhado e recomendado, sem as fricções do risco, da incerteza”, observa o sociólogo Liráucio Girardi Junior, professor na Faculdade Cásper Líbero e na Universidade de São Caetano do Sul, ao citar o texto intitulado “A segunda morte do ‘flâneur’”, do bielorrusso Evgeny Morozov. “Como dizia Morozov: o traço que marca o passeio do ‘flâneur’ é o fato de ele não saber o que lhe interessa mais.”
Ele destaca, porém, as novas perspectivas que a internet tem trazido para essa experiência. “Muitas vezes a ‘flânerie’ foi considerada ‘morta’, uma vez que está entrelaçada com o ambiente da cidade moderna em constante transformação. Hoje, com a criação de novos espaços comunicacionais, a partir da integração dos mais variados dispositivos à rede e entre si, os deslocamentos estão sendo expandidos ou aumentados, particularmente, pelo turismo, gerando novos tipos de experiência para todos que se interessam pelo cotidiano da cidade e sua história.”
Nesse sentido, o sociólogo menciona a criação do Dérive App (disponível na Google Store e Apple Store), que, na própria descrição para download, é definido como “uma plataforma simples, mas envolvente, que permite aos usuários explorar seus espaços urbanos de maneira despreocupada e casual”. Funciona como um jogo em que o usuário se perde de propósito por determinada região e é estimulado a descobrir novos espaços. Isso ocorre por meio de cartões de tarefas, sorteados de maneira aleatória, que indicam iniciativas como sentar-se em um parque, mover-se na direção de um rio etc. Trata-se de uma forma, no mínimo, curiosa de integrar a geografia urbana ao universo digital.
Por outro lado, quando essa integração não acontece, podemos nos deparar com uma série de prejuízos da pós-modernidade, tanto físicos quanto emocionais. As mídias digitais contribuem para o combo.
“Nós perdemos o que acontece à nossa volta, no presente. Muitas pessoas veem um show ao vivo por intermédio de sua câmera, mesmo estando lá. Ou, quando querem fotografar um evento, elas perdem o momento em que está acontecendo, para vivenciá-lo por meio de uma foto. Elas registram o que vão comer, o local onde estão, com quem estão. Com as redes sociais, gente passa a viver em uma sociedade muito mais do parecer do que do ser”, afirma a psicóloga Anna Lucia Spear King, doutora em saúde mental.
King fundou e coordena o Laboratório Delete – Detox Digital e Uso Consciente de Tecnologias, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela destaca, ainda, a falta de profundidade dos diálogos e a perda das minúcias do cotidiano, “das pessoas que a gente poderia conhecer e não conhece porque não tira a cara do celular”.
Dependendo da intensidade, os usuários de internet podem desenvolver a dependência patológica da tecnologia, que é chamada de nomofobia. Em geral, nesses casos, há um transtorno mental associado, como ansiedade ou depressão, quando a fixação pelo ambiente tecnológico compromete a vida acadêmica, pessoal ou profissional. A condição requer acompanhamento psiquiátrico.
Em que medida tudo isso se conecta à crônica? A chave (que precisa ser constantemente virada) está em não se fechar em si, sugere Xico Sá. “É como o corpo. O músculo atrofia, o olhar atrofia se a gente não voltar a observar a paisagem, o cara que chora no Metrô [de São Paulo] numa segunda-feira entre o Paraíso e a Consolação.”
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