A tensão EUA-China, política imigratória hostil e a retórica xenofóbica do governo Trump e da mídia conservadora americana estão afastando os estudantes chineses das universidades americanas, que nos últimos anos passaram a depender desse grupo para manter suas finanças
Por Yifan Yu, Cheng Ting-Fang, LaulyLi e Coco Liu — Nikkei, de Palo Alto, Taipé e Hong Kong
04/09/2020 no Valor Econômico
O segundo ano de Tom Zeng no Queens College da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY), começou com uma mensagem de vídeo do reitor seguida de dias de aulas em vídeo. Seus colegas, normalmente uma presença barulhenta a alegre, foram substituídos por um painel de ícones anônimos e sem vida do Zoom. Ele saiu de seu apartamento só uma vez na semana passada, para uma rara oportunidade de ter uma aula presencial.
Isso não é o que ele esperava quando chegou pouco mais de um ano, vindo de Shandong, região de minas de carvão da China. Zeng estava animado para estudar ciências da computação e conseguir um emprego como engenheiro.
Apesar do peso que é para sua família – de classe média suburbana da China – arcar com as despesas de aluguel, de US$ 2.000 mensais, mais a mensalidade da universidade, ele sentia que valia a pena. A chance de ter colegas de todas as partes do mundo e se relacionar com especialistas. Ele sentia que um diploma americano o levaria aonde ele quisesse ir.
Mas agora Zeng está arrependido de ter ido para os EUA. “Como posso não me arrepender com tudo o que aconteceu neste ano?”
Primeiro foi a guerra comercial entre EUA e China, no ano passado, que inflamou as relações entre as duas superpotências e levou a restrições aos jovens estudantes chineses de alta tecnologia, devido a temores de espionagem.
Depois veio a covid-19: não só a ameaça física, mas o custo psicológico do “lockdown” e uma guinada para o racismo contra os asiáticos, alimentado pela mídia de direita e até mesmo pela Casa Branca. A covid-19 é o “vírus de Wuhan” e o “vírus da China”, nas palavras do presidente Donald Trump.
“Volte para a China!” é uma frase com que Zeng se depara constantemente no Facebook.
Em vez de abrir os horizontes, a vida americana aprisionou Zeng. “O momento é muito difícil para estudantes chineses como eu. Precisamos nos preocupar em evitar a covid-19 como todos, mas também ficamos em alerta porque não sabemos se alguém dirá ou fará algo prejudicial só porque você parece ser chinês”, diz Zeng.
As preocupações de Zeng são típicas dos chineses que estudam nos EUA. O maior grupo de estudantes estrangeiros até agora – 369.548 no ano passado – quase quadruplicou nos últimos dez anos, em meio ao otimismo sobre o futuro das relações EUA-China e o valor do ensino americano. Com o aumento da renda na China, centenas de milhares de jovens chineses passaram a estudar no exterior.
Os estudantes chineses transformaram todo o modelo de negócios do ensino superior americano, um setor lucrativo em que os pagamentos de mensalidades totalizaram US$ 170 bilhões no ano letivo 2017-18, segundo o Centro Nacional de Estatísticas de Ensino. As universidades americanas passaram a depender dos estrangeiros – principalmente da afluente classe média chinesa – para fechar as contas. Desde os anos 90 os governos estaduais têm reduzido os gastos com as suas universidades. Os estudantes estrangeiros que pagam o valor integral das mensalidades, um terço deles chineses, completam a receita necessária.
Na Universidade da Califórnia em Los Angeles, por exemplo, as mensalidades e taxas para os alunos de fora do estado e estrangeiros em 2020 são cerca de três vezes maiores que as dos alunos nascidos na Califórnia – que podem pleitear bolsas. Em alguns campi, como o da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, os chineses representam 10% dos alunos.
“Os governos estaduais reduziram a verba para as universidades nas últimas duas décadas”, diz Gaurav Khanna, professor da Faculdade de Política Global e Estratégia da Universidade da Califórnia em San Diego. “Portanto, as universidades vinham há algum tempo buscando meios para se adaptar à queda na receita. E foi quando a renda cresceu de forma rápida e constante na China.”
Um estudo de Khanna e quatro outros autores feito neste ano para o National Bureau of Economic Research constatou uma queda de 10% nos recursos públicos para as universidades estaduais, que foi compensada com um aumento de 12% nas matrículas de estudantes estrangeiros que pagam o valor integral das mensalidades. Eles são tão importantes para a receita que em 2017 o Gies College of Business da Universidade de Illinois fez um seguro contra a queda de matrículas de estudantes chineses.
Agora, em meio a tensão dos estudantes chineses – alimentado pela covid-19, disputa EUA-China e racismo – o temido cenário parece estar se desvelando.
“A covid-19 poderá devastar as finanças”, diz Phil Baty, diretor da Times Higher Education (THE), empresa britânica de dados globais de educação. “Com várias universidades americanas dependendo dos estudantes estrangeiros para complementar a renda de outras fontes e com as principais universidades dos EUA bastante preocupadas com uma queda dos números de estudantes estrangeiros depois da covid-19, algumas podem estar diante de um rombo.”
Dos educadores consultados pela THE, 92% acreditam que algumas universidades vão quebrar.
O American Council on Education, um grupo setorial de Washington, disse em abril que as universidades americanas deverão perder US$ 23 bilhões em receita durante o próximo ano acadêmico, em parte por uma queda estimada de 25% no número de estudantes estrangeiros.
Segundo Khanna, antes mesmo do choque da covid-19 o fluxo de estudantes chineses começou a diminuir significativamente, em parte devido ao aumento das tensões entre Pequim e Washington.
Uma pesquisa feita pelo Nikkei entre organizações de estudante estrangeiros em uma série de campi, mostrou que 24% dos participantes pensavam em deixar os EUA, citando a política de concessão de vistos e o governo Trump como principais motivos. Outros 35% descreveram como “talvez” a possibilidade de ir embora.
Pela primeira vez desde 2015 o Reino Unido superou os EUA, neste ano, como o principal destino internacional para os estudos por estudantes chineses, segundo uma pesquisa anual publicada pelo New Oriental Education and Technology Group, uma das maiores companhias de ensino da China.
Entre as 6.673 respostas da pesquisa feita em 34 províncias da China, 42% dos estudantes disseram preferir o Reino Unido sobre qualquer outro país para estudar no exterior, com 37% apontando os EUA como a principal escolha. As tensões recentes entre EUA e China foram um grande fator que levou à mudança, diz o relatório.
Nick Wang, estudante chinês de pós-graduação em ciências da computação na Brown University, decidiu adiar sua matrícula para o novo ano letivo. Ele agora está se candidatando a universidades no Reino Unido, Cingapura e Europa. Antes, esse jovem de 23 anos optou pelas universidades americanas por admirar a supremacia dos EUA nas ciências da computação.
“Estou preocupado se conseguirei manter meu visto para os EUA no ano que vem. Mesmo que consiga, não sei se conseguirei trabalhar nos EUA depois que me formar.”
A maioria dos estudantes chineses vê sua formação nos EUA como um passaporte para um emprego e uma nova vida no país. “Caso contrário, só qualidade do ensino nos EUA não justifica as altas mensalidades”, explica Wang.
O programa de graduação de dois anos da Brown University, combinado com as despesas de subsistência custariam à família de Wang cerca de 1 milhão de yuans (US$ 142.500) – uma soma considerável para os cidadãos de um país onde a renda anual disponível per capita foi em média de 39 mil yuans no ano passado.
Esperanças e medos: Nascida e criada em Pequim, Joyce Fan esteve nos EUA pela primeira vez em 2010 para estudar história e filosofia na Northwestern University de Illinois. Em 2018, ela decidiu voltar para estudar direito na New York University Law School.
Sua experiência de estudante estrangeira nos EUA durante o governo de Barack Obama é muito diferente da experiência atual. Fan diz que nunca se preocupou com a possibilidade de seu visto ser revogado ou em ter problema para obter um visto de treinamento prático opcional (OPT) – estágio de um ano concedido aos estrangeiros que concluem seus estudos nos EUA. O governo Trump defende uma reforma e até mesmo o cancelamento do programa de OPT.
“Não posso planejar nada porque sinto o tempo todo que nós [chineses] poderemos ser expulsos a qualquer momento”, diz Fan.
Seus temores não são infundados. Em 26 de agosto, por exemplo, a Universidade do Norte do Texas cortou os laços com 15 pesquisadores chineses com bolsas financiadas por um patrocinador governamental chinês conhecido como Chinese Scholarship Council, sem apresentar nenhuma explicação.
Fan também se sente insegura em usar o metrô, ou qualquer outro transporte público, por causa das notícias de agressão a passageiros de aparência asiática.
“Tudo que aconteceu nos últimos dois anos desde que Trump assumiu, deixou os estudantes estrangeiros muito nervosos com a possibilidade de ir para os EUA e com suas perspectivas de longo prazo no país”, diz Dan Berger, da firma de advocacia especializada em imigração Curran, Berger & Kludt de Massachusetts.
“Estamos num ponto crucial no momento… Mesmo que algumas das políticas anti-imigração do governo sejam barradas nos tribunais, eles continuarão desencorajando os estudantes estrangeiros de vir para cá”, acrescenta Berger.
Permanecer nos EUA está cada vez mais difícil para os estudantes chineses, especialmente de ciências e engenharia. Em 2018, Washington reduziu a duração dos vistos para os estudantes chineses de pós-graduação em aviação, robótica e produção avançada de cinco anos para um, alegando o risco de espionagem e roubo de propriedade intelectual.
Mais recentemente, Trump anunciou uma série de ordens executivas para reformar o visto H-1B – uma autorização de trabalho usado principalmente por indianos e chineses – que incluem salários mais altos, educação e outras exigências de requerimento, e dá prioridade a alguns empregos federais para cidadãos americanos.
Sob Trump, a emissão de vistos de não-imigrantes caiu de 10,9 milhões em 2015 para 8,7 milhões em 2019, na quarta queda consecutiva. A taxa de não concessão dos vistos H-1B mais que triplicou para 33% em 2019, de 10% em 2016, segundo a National Foundation for American Policy da Virgínia.
Indesejáveis: Por causa da política da Casa Branca e da mídia conservadora, o nacionalismo branco e a xenofobia estão em alta nos EUA. Entre março e maio houve mais de 1.900 incidentes de discriminação anti-asiática nos EUA, segundo o Asian Pacific Policy and Planning Council, que atribuiu o aumento à “disseminação de informações enganosas e ao preconceito de autoridades do governo contra os chineses”.
Em julho, 73% dos adultos americanos disseram ter uma visão desfavorável da China, um aumento de 26% desde 2018, segundo uma pesquisa do Pew Research Center. Cerca de um em cada quatro americanos também descreveu a China como inimiga dos EUA – quase o dobro em relação a quando essa pergunta foi feita em 2012.
Nos últimos dois meses, o governo dos EUA anunciou uma série de políticas visando os chineses e outros trabalhadores do setor de alta tecnologia nascidos fora dos EUA. Estas incluem a proibição de estudantes e acadêmicos chineses de terem laços com os militares americanos e a restrição de entrada no país de detentores do H-1B e outros vistos de trabalho.
Em julho, o governo Trump implementou uma política, que teve vida curta, exigindo que os estudantes estrangeiros se transferissem ou deixassem o país, se suas escolas passassem a ministras aulas somente pela internet por causa da pandemia de covid-19.
A lei, logo anulada pelo governo após oito ações federais e a oposição de centenas de universidades, apavorou os estudante estrangeiros, que se viram no meio da disputa política sobre as aulas presenciais. As universidades estavam sendo informadas de que o governo proibiria uma de suas principais fontes de receitas se elas não concordassem em manter as escolas abertas durante a pandemia.
Demanda firme: Apesar da ruptura causada pela pandemia, a demanda de chineses pelo ensino internacional continua firme. Relatório trimestral da rede internacional de ensino superior QS mostra que só 4% dos estudantes chineses entrevistados desistiram de estudar no exterior por causa da covid-19.
Como os EUA estão perdendo sua atratividade junto aos estudantes chineses por causa de múltiplos fatores, a firme demanda chinesa pelo ensino no exterior criou uma grande oportunidade de mercado para outros países.
“A educação é uma indústria enorme e um grande negócio para todos os maiores países”, disse Vivien Liang, diretora do Franklin International Education Group.
Graças à uma política favorável de concessão de vistos, o Reino Unido vem atraindo o interesse dos estudantes chineses. No início do ano, Londres restabeleceu o programa de trabalho (PSW) que oferece um visto de dois anos para estudantes estrangeiros trabalharem no país após a graduação. A suspensão do programa em 2012 levou à queda de estudantes estrangeiros no país nos últimos oito anos, especialmente da Índia.
“No momento, as notícias que vêm do Reino Unido são bem mais positivas que as dos EUA. Isso, além do visto PSW, está fazendo do país uma escolha positiva”, diz Sean Jones, gerente nacional de Taiwan da UKEAS, consultoria internacional em educação.
Mesmo para os estudantes não-chineses, parece estar havendo uma mudança de interesse dos EUA para outros países nos últimos quatro anos. O sudeste da Ásia tem visto seus estudantes se desviarem para a Austrália, Canadá e Reino Unido, embora os EUA continuem sendo mais populares.
Mas um dos maiores danos é para a imagem externa dos EUA. Com uma onda de políticas de imigração nada amigáveis, “as pessoas não vão para lá porque já não têm mais uma grande opinião sobre os EUA”, diz Shaun Rein, da consultoria China Market Research Group de Xangai. “O soft power se foi.”
O ranking da THE para 2021, divulgado nesta semana, mostra que embora as universidades americanas continuem dominando o topo, as “instituições que não estão entre as 200 maiores estão dando sinais de declínio”. Enquanto isso, a Universidade Tsinghua da China tornou-se a primeira asiática a entrar no ranking das 20 melhores.
Economicamente, também, os efeitos da queda de estudantes estrangeiros não estão limitados ao ensino superior. Os estudantes estrangeiros em faculdades e universidades americanas contribuíram com US$ 41 bilhões e apoiaram 458.290 empregos nos EUA durante o ano letivo de 2018-19, segundo o grupo setorial NAFSA. As cidades universitárias, muitas com mercados imobiliários que giram em torno do fornecimento de acomodações para estudantes estrangeiros, serão duramente atingidas.
Mesmo assim, os nomes das instituições americanas e a profusão de empregos na área de tecnologia continuam trabalhando a favor dos EUA. E as universidades tentam se distanciar da hostilidade do governo Trump em relação aos chineses e outros estrangeiros.
A Universidade Harvard e o Massachusetts Institute of Technology (MIT) entraram com uma ação contra a política do governo Trump proibindo os estudantes estrangeiros de terem aulas online, e centenas de faculdades e mais de 70 associações de ensino superior entraram como “amicus curiae” em apoio a Harvard e ao MIT.
Tom Zeng da CUNY, disse que sua escola mantém contato constante com estudantes estrangeiros como ele, ajudando-os a conseguir assistência jurídica e de alojamento. “Eu me arrependi de vir para os EUA, mas não há como negar que o país ainda tem as melhores escolas, os melhores recursos e algumas das melhores pessoas.” (Tradução de Mario Zamarian)
https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/09/04/chineses-estao-desistindo-de-estudar-nos-eua.ghtml
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