A linguagem inclusiva já está disponível


Se o seu objetivo não for polemizar a língua, nem desmerecer tanta gente que clama por ser incluída num discurso que as exclui desde sempre, vale o esforço.

Por Isabel Clemente* – Valor – 04/05/2023 

Pense no texto como uma estrada. Se for segura, bem pavimentada e sinalizada, não apresentar cruzamentos perigosos, você vai permanecer nela o tempo que for. Sem se preocupar com buracos, há uma grande chance de você ainda aproveitar a vista.

Um texto bom é um pouco assim. Você não esbarra em obstáculos nem cai em armadilhas. Toda palavra parece estar no lugar certo. A leitura flui. Quebra-molas na leitura são feitos de interrupções, explicações excessivas empilhadas numa única sentença. Fora os símbolos matemáticos. Sabe quando alguém insere barra na escrita? Porque não decidiu entre eu e ou, daí optou por e/ou? Tentou usar uma linguagem neutra de gênero e agregou asterisco, arroba e uma fileira de palavras separadas por barra?

As soluções que têm aparecido para minimizar o domínio do masculino na língua portuguesa não estão pacificadas. A polêmica é grande. Na verdade, é uma guerra. Já sabemos que símbolos tornam a leitura menos acessível a certos grupos, como pessoas com dislexia e deficiência visual dependentes de inteligência artificial. Todes não inclui todos e todas, então continuamos sem um pronome neutro que englobe todo mundo. E olha aqui “todo mundo” gritando na minha cara.

Não estávamos preparadas para questionar, lá atrás na escola, por que o plural seria sempre masculino mesmo que a maioria esmagadora do grupo fosse de meninas. É fato, gente, que isso foi uma arbitrariedade. A vigência do plural masculino e a tendência de se referir também ao masculino no singular em textos genéricos foi uma decisão tomada em algum momento da história da nossa língua. Herdamos uma sociedade patriarcal. E como representatividade tem tudo a ver com autoridade, quanto mais representantes de um grupo são vistos pela língua, mais espaço e poder eles têm, e menos relevância é dada aos demais. Como bem resumiu a escritora portuguesa Grada Kilomba, “a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade.”

Movimentos para tornar as línguas mais inclusivas estão acontecendo no mundo todo, em espanhol, francês, italiano, até árabe. A lista é longa e inesperada. Nem o alemão, com sua complicada sintaxe, escapou. Hannover foi a primeira cidade da Alemanha a adotar oficialmente uma linguagem mais inclusiva em seus comunicados, li no “Washington Post”. A iniciativa começou em 2019. Outro dia. Em vez de se referir ao eleitor ou a eleitora, por exemplo, eles preferem a pessoa que vota, o que não soa ruim.

Linguistas responsáveis pela atualização do Petit Robert, dicionário referência da língua francesa, decidiram incluir o pronome neutro iel (uma combinação de “lui” – ele – e “elle” – ela) porque seu uso havia aumentado muito na França. Despertou a ira dos tradicionalistas. O debate lá está quentíssimo. Tem um ensaio ótimo no Lit Hub caso você queira se aprofundar, intitulado “The makers of this French dictionary are under fire for including gender-inclusive language”.

Em 2015, boa parte da imprensa americana adotou o pronome “they”, do plural sem gênero do inglês, como pronome neutro e singular para se referir às pessoas independente do gênero. A prática se disseminou na literatura, nos jornais, na internet. Mesmo no inglês, língua que não sofre – como as latinas – influência tão marcante de gêneros nas palavras, a mudança foi polêmica. Houve chiadeira. Mas, olha que curioso, Shakespeare usava “they” no singular como pronome neutro porque o uso de “he” (ele) foi uma imposição dos gramáticos da era Victoriana.

Norma culta muda na marra sim. Alguém precisou parar de escrever farmácia com ph de uma hora para outra para se atualizar. Jogamos fora o acento agudo de plateia e outros. Abolimos a trema. O estilo da nossa escrita também mudou. Eu causaria espécie se começasse a escrever num estilo parnasiano-bucólico-pastoril. Escritores como Machado de Assis e Lima Barreto buscaram aproximar a escrita do discurso, num tempo em que aquela escrita mais natural não era aceita pela elite. Os modernistas retomaram com força esse ideal na semana de 1922. O gramático Evanildo Bechara lembra, em “Estudos da Língua Portuguesa”, que “todo movimento inovador, qualquer que seja a natureza, tem sempre seu lado iconoclasta, isto é, pretende derrubar conceitos e preconceitos arraigados por uma tradição, substituindo-os por novos parâmetros, que o tempo se encarregará de minimizar ou apodrecer.”

Dito tudo isso, eu só queria chamar sua atenção para uma forma de escrever mais inclusiva com os recursos que a língua já tem. Vai facilitar a conexão com as pessoas que você quer alcançar, independentemente se você já adotou todes, resiste a ele ou não sabe o que pensar a respeito. Tem tempo para refletir.

Vou listar algumas soluções bem simples.

A saudação “boa noite a todos, todas e todes que vieram me prestigiar”, tão comum em lives nas redes sociais, é longa. A comunicação eficaz deve mirar também nas pessoas que carregam crenças com as quais discordamos. Não seria mais natural um “boa noite a vocês que vieram me prestigiar”? Ou, melhor ainda, “boa noite para você que está me assistindo”, já que assistir a um vídeo é uma atividade individual? O singular cria uma intimidade ainda maior no distante mundo digital. E ainda tem caminhos mais informais, como um “boa noite, pessoal, gente, galera, turma, povo”, quem sabe “malta”. Esse eu trouxe de Portugal. Adoro.

O mundo corporativo tem muitos desafios nesse campo. Que tal se referir à clientela em vez de o cliente; liderança ou alta gerência, em vez de top executivos ou os chefes? Funcionários podem ser um time, ou a equipe. Por que não trocar os informes destinados a “investidores” para “quem investe”? Acionistas sem artigo antes também resolve. Uma grande empresa anuncia em seu site de forma quase isenta “precisamos de profissionais plurais e versáteis, abertos ao diálogo e ao contraditório”. Sem “abertos”, podia ter completado a frase com “que saibam dialogar e lidar com o contraditório”.

Às vezes, o segredo é evitar adjetivos e recorrer aos substantivos originais para elaborar frases que não fechem num gênero só. Uma empresa pode ser mais inovadora se, em vez de anunciar “aqui somos inovadores”, apostar mais na “procura incessante por inovação”.

O português tem lindas palavras neutras. Aprendemos que elas são “comum de dois” porque era assim que se dizia então, mas elas são neutras. É só usar sem o artigo. Estudantes, artistas, jornalistas, juristas, profissionais. Sua lista particular deve ter mais. Limar artigos não costuma dar problema, pelo contrário, torna inespecífico o grupo ao qual se dirige. Por exemplo: um comunicado direcionado “a profissionais com mais de dez anos de casa” não é o mesmo que um comunicado direcionado “aos profissionais” ou aos “muitos profissionais”. Resista a “muitos” e “os” porque não fará diferença. Sem artigo, empregadores podem ser chamados de contratantes; e chefe pode entrar sem drama e sem artigo. Num texto bem formulado, fornecedores estão na lista das parcerias comerciais, dos fornecimentos. Aliás, sabia que não existe artigos em latim?

Nem sempre dá para fugir das palavras com gênero, nem encontrar rotas alternativas. Faz parte. Você deverá levar em conta audiência, contexto e propósito do texto. Escolha a coerência e a elegância. Sempre dá para ampliar o alcance do que se quer dizer com repertório e criatividade. Se o seu objetivo não for polemizar a língua, nem desmerecer tanta gente que clama por ser incluída num discurso que as exclui desde sempre, vale o esforço.

A escrita é um meio para sensibilizar, informar, seduzir, convencer e divertir. Qualquer que seja sua intenção, é preciso incluir técnicas para cativar sua audiência, evitando cacos e ruído. Vivemos tempos de muitos conflitos. Trazer mais gente para o debate tornou-se urgente. Uma linguagem inclusiva é das ferramentas mais poderosas que temos à mão para chegar lá, pavimentando nossa estrada com palavras mais amistosas.

*Carioca, é formada em Jornalismo pela PUC-Rio e mestre em Escrita Criativa pela Royal Holloway, University of London

https://valor.globo.com/opiniao/isabel-clemente/coluna/a-linguagem-inclusiva-ja-esta-disponivel.ghtml

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Um comentário em “A linguagem inclusiva já está disponível

  1. Essa turminha do “Todes” tinha que criar vergonha na cara. Que tristeza querer mudar a lingua brasileira para stender as vontades de uns que se sentem outros. Tome tenência cambada!

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