Por Guilherme Ravache – Valor – 05/04/2023
À medida que governos do mundo inteiro avançam com leis para aumentar a regulação das “big techs” e criam mecanismos para que gigantes de tecnologia remunerem veículos de notícias, o Google ameaça retirar links de veículos de imprensa de suas plataformas se for obrigado a pagar para usar o conteúdo de notícias.
É o mesmo Google que há cerca de três anos anunciou que investiria US$ 1 bilhão para parcerias de apoio ao jornalismo e que fez acordos com veículos da Austrália, após uma lei pioneira sobre o tema ter entrado em vigor há dois anos. Sundar Pichai, CEO do Google, afirmou em 2020: “Sempre valorizei o jornalismo de qualidade e acreditei que uma indústria de notícias vibrante é fundamental para o funcionamento de uma sociedade democrática”.
Pichai em três anos deixou de acreditar na democracia ou os melhores dias do Google ficaram no passado e ele caminha para se tornar uma empresa decadente? A resposta é complexa e passa por problemas internos do Google, pelo estilo de gestão do CEO e até pela oportunidade de sensibilizar políticos.
Demissões, o fim da yoga e sushi de graça
Fato é que Google está ficando para trás. Ter sido ultrapassado pelo ChatGPT e a Microsoft na corrida da inteligência artificial é o mais recente exemplo deste novo cenário, mas não é um caso isolado.
Com o YouTube a história é semelhante, apesar da posição dominante no mercado, a plataforma de vídeos do Google começou a perder espaço para o TikTok. Neste ano, o YouTube trocou de CEO após reportar pela primeira vez na história ter uma contração em sua receita. No último trimestre de 2022, o faturamento de publicidade do YouTube ficou em US$ 7,96 bilhões, uma queda de 8% em relação aos US$ 8,63 bilhões do ano anterior.
Mas o problema vai além de resultados ruins. O Google, famoso por oferecer aulas de yoga e sushi de graça aos funcionários, agora está se notabilizando por demitir sem qualquer sensibilidade.
Após cortar 12 mil colaboradores em janeiro, ou 6% de sua força de trabalho, em março a companhia deu indicações aos ex-funcionários, que foram demitidos durante a licença maternidade e médica, que eles não seriam pagos por todo o tempo restante (o caso aconteceu nos EUA, onde a lei não exige, mas muitas empresas pagam).
Por sinal, a maneira que os cortes foram feitos no Google são um exemplo de como não fazer demissões. Com a falta de sensibilidade que está se tornando uma marca do Vale do Silício, milhares de pessoas foram comunicadas do desligamento por e-mail ou quando passaram seus crachás e não puderam entrar no escritório.
Nesta semana, o Google anunciou novos cortes de custos. Agora, irá restringir a troca de laptops, diminuir serviços oferecidos aos funcionários e cortará até suprimentos do escritório. Adeus grampeadores, esqueça os sushis e almoços de chefs badalados.
Crise ou jogo de cena
Mas não se deixe levar pelas notícias negativas. O que o Google vê como “crise”, na verdade significa crescer em ritmo mais lento. O Google (na verdade a Alphabet, holding que inclui o Google) gerou quase US$ 60 bilhões de lucro líquido em 2022, uma desaceleração em comparação aos US$ 76 bilhões de lucro líquido em 2021, quando todos estavam online com a pandemia.
O cenário é menos ruim se considerarmos que neste ano as ações do Google já subiram mais de 18% com a perspectiva de melhora em 2024. Afinal, a receita da empresa foi de US$ 279,8 bilhões no ano passado, quase R$ 1,4 trilhão (sim, trilhão) e deve subir neste ano.
Em um momento em que o Google está sendo pressionado no mundo inteiro por governos e órgãos reguladores para assumir as responsabilidades de ter o monopólio do mercado de mídia digital, se colocar em um cenário negativo é um trunfo para a gigante de tecnologia, mesmo que às custas de seus colaboradores.
É importante lembrar que o problema do Google não são as despesas, mas sim ter se tornado tão grande e poderoso que perdeu o rumo. Seguir crescendo sem limites é a meta final. Mas como qualquer investidor sabe, nenhuma árvore cresce até o céu.
Problemas profundos na empresa
Em junho de 2021, quando o Google batia recordes de faturamento e lucro, 15 executivos e ex-executivos do Google afirmaram em uma reportagem do “New York Times” que estavam preocupados com os rumos da companhia.
Um dos problemas apontados foi o estilo de liderança de Pichai, o afável e discreto CEO da empresa, que antes de entrar no Google trabalhou como consultor na McKinsey.
Para os executivos entrevistados, o Google estava sofrendo de muitas das armadilhas de uma empresa grande e madura — uma burocracia paralisante, um viés para a inação e uma fixação sobre como era percebido pelo público.
Os executivos, alguns dos quais interagiam regularmente com Pichai, disseram que o Google não agiu rapidamente nas principais mudanças de negócios e de pessoal porque ele (Pichai) refletiu sobre as decisões e adiou as ações. Eles disseram que o Google continuou a ser abalado por lutas culturais no local de trabalho e que as tentativas de Pichai de reduzir os conflitos tiveram o efeito oposto — permitiu que os problemas se agravassem enquanto ele evitava posições duras e às vezes impopulares.
Ou seja, a maneira esquizofrênica com que o Google trata o mercado de notícias, as demissões desordenadas e tantas ações conflitantes são apenas a face mais visível de um conjunto de fatores que criou um monopólio cada vez menos ineficiente, mas tão poderoso que não pode de fato ser desafiado pelos concorrentes.
ChatGPT por enquanto não oferece risco
Sim, o ChatGPT é um fenômeno, mas as chances da ferramenta roubar usuários do Google massivamente, e principalmente, faturar US$ 279,8 bilhões por ano com publicidade como a gigante de buscas, ainda é um cenário distante. O Google lançou o Bard, um concorrente do ChatGPT. Pode não ser tão bom quanto, mas tamanho e base de usuários resolvem (ou o Microsoft Teams não seria a plataforma líder do segmento).
Para os acionistas do Google há mais uma boa notícia, a solução para o problema já existe e foi usada diversas vezes no passado. O Google deveria ser dividido em várias novas empresas. Fazer isso é não correr o risco de virar uma nova GE, que depois de reunir tantos negócios se tornou tão ineficiente que colapsou.
Empresas menores são forçadas a se tornarem mais competitivas e criam novas oportunidades no mercado. O Waze é um exemplo. O aplicativo que revolucionou o mercado de navegação, hoje é tratado como puxadinho do Google Maps.
Hoje, o YouTube nem precisa se preocupar muito com eficiência, já que o Google tem domínio absoluto do mercado de publicidade e pode priorizar suas próprias plataformas. Entre colocar uma campanha no YouTube ou em um parceiro, o natural é que o Google beneficie seus próprios negócios.
Este é outro problema. As principais ferramentas de compra e venda de publicidade digital são do Google.
Raposa cuidando do galinheiro
A Comissão Europeia puniu o Google em 2017 com uma multa de US$ 2,8 bilhões por direcionar injustamente os visitantes para seu próprio serviço de compras, o Google Shopping, em detrimento dos concorrentes.
O Google também controla o Chrome e o Android, ou seja, controla o maior navegador do planeta e o sistema operacional mais popular do mundo. Então, quando uma empresa digital ouve: você tem de escapar do Google, a questão é: de que jeito? Já que a plataforma controla computadores e celulares.
O Departamento de Justiça dos Estados Unidos no início do ano abriu um processo buscando o desmembramento do negócio de compra e venda de publicidade digital do Google. O processo alega que o Google abusa do poder de monopólio na indústria de tecnologia de anúncios, prejudicando editores da web e anunciantes que tentam usar produtos concorrentes.
O próprio Google fica devendo em inovação em novos negócios. Nos recentes cortes, a Area 120, uma incubadora de novos negócios dentro do grupo, foi duramente afetada, com a maior parte do time desligado. Balões com internet, iniciativas em saúde, carros autônomos, foram projetos caros do Google, mas com poucos resultados financeiros práticos.
Surpreendentemente, a China parece estar à frente dos Estados Unidos neste sentido. Após pressão do governo o Alibaba, espécie de Google chinês, revelou na semana passada que iria ser dividido em seis empresas, com algumas inclusive sendo listadas. No dia do anúncio, as ações subiram mais de 14%. A avaliação geral é de que os problemas de regulação iriam diminuir e as chances do Alibaba voltar a inovar cresceriam.
Por que o YouTube deveria ser independente
O YouTube é um exemplo de negócio que deveria ser dividido. Mais consumido que a Netflix no Brasil, Estados Unidos e diversos países, no ano passado a plataforma de vídeos do Google faturou mais de US$ 29 bilhões. É apenas 10% do faturamento do Google, mas o mercado de publicidade em TV no mundo inteiro equivale a US$ 140 bilhões, segundo dados da Ampére.
Como apontou a “The Economist” no mês passado, o YouTube tem potencial para valer mais que a Netflix, hoje avaliada em US$ 154 bilhões.
O YouTube é um lembrete do tamanho do domínio do Google. Difícil para qualquer empresa (às exceções de Apple e Amazon) concorrerem com a plataforma. O YouTube gastará US$ 14 bilhões em sete anos apenas para ter o direito de transmitir jogos de futebol americano aos domingos.
Assim como o YouTube, diversos negócios do Google estão sendo subutilizados e deixaram de inovar, mas principalmente, impedem a sobrevivência de concorrentes e o surgimento de novos negócios. Dividir o Google seria um passo importante para o CEO da companhia voltar a defender o jornalismo de qualidade e uma indústria de notícias vibrante. Como Pichai mesmo disse, isso é fundamental para o funcionamento de uma sociedade democrática.
PS: Já participei de projetos de apoio ao jornalismo patrocinados por Google e Meta
Guilherme Ravache é consultor e atua em projetos de jornalismo digital no Brasil e exterior. Após passagens por grandes veículos de imprensa no país, atuou no marketing de empresas multinacionais. Nos últimos anos, especializou-se na cobertura do mercado de mídia
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