O superpoder humano no mundo das máquinas


O pensamento crítico é a força motriz que está por detrás das melhores perguntas e o filtro que seleciona as melhores respostas

Martha Gabriel – MIT Sloan Review – 07 de Fevereiro 2023

Se 2021 foi o ano que alavancou os NFTs e 2022 foi a vez do metaverso, 2023 deve entrar para a história com a inteligência artificial (IA) – o seu início foi marcado especialmente pela ascensão de uma nova ferramenta inteligente que ganhou popularidade fulminante, o chatGPT, tornando-o a tecnologia que alcançou 1 milhão de usuários mais rapidamente no mundo em apenas 5 dias.

Se você já experimentou o chatGPT, sabe o porquê dessa explosão de interesse. A sensação inicial em usá-lo é uma mistura de euforia e medo, característica típica das experiências de se deparar com algo extraordinário e, ao mesmo tempo, desconhecido: por um lado, parece mágica – como já nos alertava Arthur C. Clark sobre as novas tecnologias em meados do século passado -, nos encantando e, provavelmente iludindo; por outro, parece impossível, como acontece com qualquer poder que não compreendemos minimamente, tendendo, assim, a nos assustar. Assim vem sendo ao longo da nossa evolução: primeiro foram o sol, os trovões e inúmeros outros fenômenos naturais, que por falta de compreensão foram endeusados por nossos antepassados. Agora, o fenômeno é artificial, a tecnologia.

Apesar dos resultados impressionantes, que muitas vezes superam a performance humana em várias dimensões (inclusive, a tão celebrada criatividade e, obviamente, a velocidade), o chatGPT é uma ferramenta em fase inicial, e deveria ser tratada e usada com cautela (como informado claramente na sua tela de abertura). No entanto, mesmo em estágio embrionário, em meio a um turbilhão de discussões éticas e questionamentos sobre o seu impacto na humanidade, a corrida dos laboratórios de IA ao redor do planeta já começou.

Na esteira do lançamento do chatGPT, temos visto uma rápida proliferação de soluções e produtos utilizando esse tipo de sistema (IA generativa) nas mais diversas áreas do conhecimento – marketing, artes, comunicação, educação, etc. -, e consequentemente, nos mais variados tipos de aplicações que vão muito além do texto, como criação de imagens, músicas, slides, vídeos, roteiros, filmes, abrangendo cada vez mais formas de produção criativa de conteúdos.

Em um primeiro momento, essas ferramentas parecem incríveis, mas devemos lembrar que isso é apenas a ponta do iceberg da aceleração da inteligência no planeta. Esse tipo de tecnologia deve evoluir muito e rapidamente nos próximos anos e deveríamos pensar no que ela pode se tornar. Nesse contexto, a questão importante não é apenas o que essas ferramentas podem fazer hoje, e sim o que nós, humanos, podemos e devemos fazer com elas conforme evoluem.

Apesar dos alertas apontando para os riscos éticos do avanço dessas tecnologias visando garantir a sustentabilidade humana, provavelmente estamos vivendo um processo irreversível – o seu desenvolvimento e uso não diminuirão, da mesma forma que aconteceu com a internet, os celulares, ou qualquer outra tecnologia do passado. Ao contrário, elas tendem a fazer cada vez mais parte das nossas vidas.

Explosão da inteligência e revolução cognitiva

Assim, definitivamente, estamos vivendo a aurora de uma nova era, impulsionada pela forma mais poderosa de inteligência possível, a inteligência híbrida, em que a inteligência humana é ampliada de forma espetacular pela inteligência artificial. Nessa jornada para o futuro, as nossas decisões – tanto como indivíduos, quanto como humanidade – determinarão se estamos abrindo a caixa de pandora ou se estamos criando uma nova Renascença, com o potencial de nos conduzir à maior revolução cognitiva da humanidade, devido à explosão da inteligência no planeta.

Ok, a essas alturas, você deve estar pensando: “estamos ouvindo falar de aplicações de inteligência artificial no mercado já há alguns anos… então, porque o que está acontecendo agora é diferente?”. Vejamos.

IA 2.0

Sabemos que a inteligência artificial não é novidade – seu conceito remonta à antiguidade e as suas sementes foram lançadas há décadas, em meados do século passado. No entanto, até recentemente, o poder da IA era restrito, sendo utilizado quase que exclusivamente por empresas que produzem sistemas com fins específicos para os seus negócios – nesse contexto, os indivíduos são “apenas” usuários secundários dessa inteligência. Exemplos disso são os sistemas de busca, como o Google, ou um navegador, como o Waze – eles utilizam sistemas inteligentes para aprender e melhorar especificamente os serviços que oferecem. Podemos chamar esse primeiro momento de IA 1.0, onde os grandes ganhos de inteligência ficam predominantemente para as empresas e seus produtos/serviços, de forma muito parecida com o que acontecia com o poder da internet na era Web 1.0.

A grande diferença agora, com a introdução no mercado de ferramentas como o chatGPT, é que os sistemas inteligentes também passaram a estar disponíveis diretamente aos indivíduos, de forma ampla e acessível, expandindo o alcance e propagação da IA. Nesse contexto, os ganhos de inteligência com a IA passam para o nível do usuário, como acontece na Web 2.0. Portanto, o chatGPT inaugura uma nova fase de ampliação e disseminação de inteligência no planeta, a IA 2.0. Isso é o catalizador da euforia e medo que temos testemunhado por meio da mídia.

Assim, se, por um lado, essa expansão de inteligência pode alavancar ganhos de produtividade dos indivíduos (e, consequentemente, das empresas) e possibilitar a otimização de recursos, por outro, ela também tende a impactar as nossas vidas de forma mais rápida e profunda do que qualquer tecnologia anterior, e essas novas implicações que precisam ser consideradas.

Bênção e maldição

Em menos de dois meses após o lançamento do chatGPT, a mídia já está repleta de discussões sobre os prós e contras na utilização desse tipo de tecnologia inteligente. Por um lado, vemos notícias diárias enaltecendo o poder dessas ferramentas, como por exemplo: como o chatGPT passou em exame de MBA e outros testes que eram páreo apenas para humanos ; como o chatGPT e MidJourney escreveram e ilustraram um livro em 72h apenas; como ferramentas de IA criam artes indistinguíveis das criadas por humanos; como compor músicas e criar vídeos utilizando a combinação dessas ferramentas, e assim por diante, inclusive causando obsessão em Wall Street. Por outro lado, aumenta também a quantidade de notícias que revelam a preocupação com o uso e a disseminação dessas ferramentas em nosso cotidiano, como, por exemplo: como detectar plágio de conteúdo gerado por IA; de quem são os direitos autorais dos materiais produzidos; qual é a confiabilidade das respostas que esses sistemas oferecem; discussões sobre banir o seu uso em escolas; e isso é só o começo, pois quanto mais poderosa a tecnologia, mais tensa é a nossa relação com ela.

Perguntas e respostas

Assim, mais uma vez na nossa história vivemos uma ruptura de certezas. E o primeiro passo para nos adaptarmos quando isso acontece é avaliar como estamos preparados para o novo ambiente que emerge, e como podemos nos preparar rapidamente no que for necessário. Ferramentas poderosas nas mãos de pessoas despreparadas tornam-se mais perigosas do que úteis, da mesma forma quando uma criança brinca com uma faca, ou quando uma pessoa alcoolizada dirige um carro. Quanto mais poderosa a ferramenta, maior o risco, não apenas para quem a usa, como também, e principalmente, para todos ao redor.

Nesse contexto, a questão fundamental agora é: no ambiente emergente de IA criativas, qual é a principal competência que precisamos desenvolver, não apenas para enfrentar, mas principalmente para crescermos? Nesse sentido, se você já testou o chatGPT, provavelmente percebeu que algumas respostas são melhores que outras. Certamente você deve ter percebido também, que ele não faz nada se você não perguntar! Portanto, o primeiro grande impulsionador de resultados (e, assim, inteligência) em sistemas inteligentes é a qualidade das perguntas, ou, em outras palavras, a capacidade de perguntar.

O grande problema nesse sentido é que fomos educados prioritariamente para responder, não perguntar. Para reagir, não para antecipar. Para seguir regras, não para criar. Para obedecer, não questionar. Entretanto, o nosso ambiente vem se transformando há décadas, desde o início da era computacional, com as máquinas evoluindo gradativamente para responder cada vez melhor e mais rápido qualquer coisa – elas começaram com cálculo matemático, depois se tornaram uma infinidade de “respondedores” (como os buscadores, navegadores, tradutores etc.), e agora, são também criadoras. Concomitantemente, humanos deveriam ter evoluído para melhorar suas competências de perguntadores – isso torna-se especialmente importante para líderes, pois eles direcionam caminhos e têm o potencial de influenciar o desenvolvimento de muitas outras pessoas, como um amplificador. Líderes que sabem perguntar em ambientes inteligentes abrem uma infinidade de possibilidades de caminhos melhores, pois a pergunta amplia, cria, ilumina. Saber apenas responder restringe, determina, limita.

Pensamento crítico

No entanto, por mais importante que a pergunta seja, perguntar apenas não resolve, é necessário também saber analisar as respostas para tomar decisões ou refinar o questionamento. Para tanto – perguntar e analisar – é preciso saber pensar criticamente. Sem essa habilidade, torna-se impossível realizar uma interação eficiente com sistemas inteligentes (sejam eles artificiais, humanos ou híbridos).

Assim, o pensamento crítico é o superpoder humano na era das máquinas inteligentes, pois, ao mesmo tempo em que ele é a força motriz que está por detrás das melhores perguntas, ele é também o filtro que seleciona as melhores respostas – é ele que avalia a informação, contexto, objetivos, pontos de vista distintos, moral, ética, valores, entre inúmeros outros fatores, durante o processo pergunta/respostas. É ele que nos faz questionar os resultados obtidos nos sistemas, validando precisão, valores, ética, intenções. É ele que nos fará perceber que uma resposta pode ser melhorada, refinada, com uma nova sequência de perguntas. É ele que pode desbloquear e ampliar a inteligência híbrida no planeta.

Apesar de ser o principal catalisador do aumento da inteligência na fusão humano-IA, a importância do pensamento crítico vai muito além – ele é também o ingrediente fundamental para garantir que esse aumento de inteligência nos conduza também, e principalmente, a uma sociedade mais sustentável, mais humana, mais justa. A inteligência sem o balizamento de valores humanos orquestrados pelo pensamento crítico, resulta exclusivamente em razão, tendendo a criar uma sociedade utilitária e cruel. Sem pensar criticamente, estaremos tão perdidos no poderoso ambiente sócio-tecnológico que emerge quanto um navegante, que apesar de ter disponível as mais poderosas bússolas e naves, não consegue usá-las para dominar o poder da natureza, ficando em risco, à sua mercê. Hoje, a nossa bússola é o pensamento crítico, e a nossa nave a IA híbrida.

Assim, nunca existiu um momento tão urgente para todos e cada um nós avaliarmos e melhorarmos o nosso pensamento crítico, pois em terra de IA, quem tem pensamento crítico é rei.

Martha Gabriel

É referência multidisciplinar na América Latina nas áreas de negócios, tendências e inovação. Futurista pelo IFTF (Institute For The Future), engenheira (UNICAMP), pós-graduada em Marketing (ESPM) e design (Belas Artes), é ainda mestre e PhD em artes (ECA/USP) e formação executiva pelo MIT Sloan. Autora dos best-sellers “Marketing Na Era Digital”, “Educar: A (R)Evolução Digital na Educação” e “Você, Eu e os Robôs”, duas vezes finalista do Prêmio Jabuti. É CEO da Martha Gabriel Consultoria que atende corporações multinacionais, bancos, governo e universidades. Professora de inteligência artificial da PUC-SP, leciona ainda no Insper e Fundação Dom Cabral. Palestrante em seis TEDx, ainda é embaixadora no Brasil da Geek Girls LatAm, ONG de fomento de educação tecnológica para garotas focando na diminuição da inequalidade e no aumento da diversidade nas áreas STEM (science, technology, engineering, mathematics).

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