Se você quer uma visão de mundo mais rica, agarre aquele romance
Por Jemima Kelly, Valor/Financial Times 30/12/2022
A semana entre o Natal e o Ano Novo é uma época do ano maravilhosa para ler. Mas não para navegar compulsivamente no Twitter atrás de notícias ruins, procurar coisas para criticar no tabloide sensacionalista que secretamente é seu favorito, ou mesmo começar aquele livro de história que você ganhou no Natal — tudo isso pode esperar. Esse é muito mais um tempo, penso eu, para mergulhar de cabeça em uma grande obra de ficção (as únicas colunas que você deve ler, é claro, são aquelas dedicadas a essa atividade).
Não há nada mais aconchegante do que se enroscar no sofá, se enfiar na cama ou — minha opção favorita — se afundar em uma banheira cheia de água quente com um bom romance, para ser transportada para terras distantes, tempos longínquos ou as mentes de personagens estranhos, obcecados por sexo e sádicos (ou talvez seja só eu; atualmente estou lendo Philip Roth).
Muitos de vocês podem pensar que isso soa um pouco autoindulgente, e não sou imune a essas questões: minha avó costumava dizer que você nunca devia ler um romance antes de anoitecer porque eles “não são coisas sérias”. Os leitores do sexo masculino podem ser especialmente propensos a pensar dessa forma — estudos indicam que apenas 20% dos homens leem obras de ficção, enquanto 64% dos romances vendidos em 2021 no Reino Unido foram comprados por mulheres.
Mas a leitura de romances é mais do que mero hedonismo. Foi o próprio Aristóteles quem disse que “a poesia é uma coisa mais filosófica e mais elevada do que a história, pois a poesia tende a expressar o universal, e a história, o particular”.
Aristóteles escreveu isso antes de que o romance existisse como forma de arte, mas seu argumento pode ser aplicado à ficção em geral. Em um livro de história, impõe-se uma narrativa a uma mistura desordenada de acontecimentos; as histórias são contadas como se avançassem ordenadamente e até racionalmente. Isso não é uma crítica; é apenas a natureza do meio. No romance, porém, não existe tal imposição: o que é importante é a própria narrativa; não existe versão alternativa da verdade.
Um romancista é como um mágico: embora escreva ficção, ele tem uma certa autenticidade, porque compreendemos que estamos a ler algo que não é real. E, como sugere Aristóteles, é isso que permite que os personagens de uma obra de ficção pareçam, de alguma forma, mais reais para nós do que figuras históricas; cada um representa um tipo de personificação da condição humana com a qual podemos nos identificar.
Muitos estudos verificaram que a leitura de obras de “ficção literária” — em oposição à não-ficção ou à ficção popular — aumenta a capacidade de empatia e a inteligência emocional. Isso ocorre porque o leitor é exposto a uma gama muito mais ampla de experiências e culturas do que encontraria na vida real, o que o ajuda a compreender que outras pessoas têm crenças, desejos e perspectivas que diferem, e às vezes muito, das suas.
Um estudo recente, publicado no Personality and Social Psychology Bulletin, concluiu que as pessoas que cresceram lendo ficção literária tinham “uma visão de mundo mais complexa” do que as que não o fizeram. Para os autores, essa visão é caracterizada por alguns fatores. Um deles é uma “complexidade atribucional aumentada”: essas pessoas se sentem confortáveis com a ambiguidade e podem entender comportamentos em termos de sistemas complexos. Outro é um grau menor de “essencialismo psicológico” — a ideia de que o comportamento humano pode ser explicado por certas características imutáveis.
“Encontrar diferenças, encontrar mentalidades diferentes, encontrar tipos diferentes de socialidade ajudam a fortalecer esta crença na complexidade do mundo”, diz Nick Buttrick, principal autor do estudo e professor de psicologia da Universidade de Wisconsin-Madison. “Se uma pessoa se depara sempre com apenas um tipo de mentalidade… e se só lê… coisas que são previsíveis, seguras, estáveis, essa pessoa acaba com uma visão de mundo que não tem complexidade, porque isso é o que é reforçado repetidamente para ela.”
O estudo traz à memória outro, de 2013, que concluiu que as pessoas que liam ficção literária tinham menos necessidade de resolução cognitiva — o desejo de remover ambiguidades e chegar a conclusões definitivas, mesmo que incorretas ou irracionais.
Em um mundo tão repleto de políticas polarizadas, qualquer coisa que possa contribuir para a construção de visões de mundo mais complexas e ricas em nuances deve ser acolhida de braços abertos. Assim, espero ter convencido todos vocês, os que procuram truques e atalhos para melhorar a eficiência e os gurus da produtividade, de que realmente não existe uma “maneira mais simples” de conseguir os benefícios que se obtém ao ler um grande romance.
Mas também escrevo esta coluna em parte como um lembrete a mim mesma de que devo ler mais livros desses — neste ano consegui ler apenas seis. No ano que vem, vou me dar a meta de um por mês, no mínimo. Talvez eu até me permita lê-los durante o dia, ocasionalmente. Porque na verdade eles são coisas muito sérias, vovó. (Tradução de Lilian Carmona)
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