Alguns europeus já estocam lenha para o inverno da energia mais cara por causa da guerra na Ucrânia
Por Vivian Oswald — Para o Valor 09/12/2022
O tal do novo normal vaticinado e alardeado por tantos pode não ter se confirmado. Mas é certo que as sucessivas crises pelas quais o mundo vem passando desencadearam grandes mudanças de comportamento nas sociedades. É cedo para garantir quais delas vieram para ficar. Mas já há um consenso entre especialistas de que o planeta vive um momento de transição que deve ser acompanhado de perto. Com os nervos à flor da pele, a Europa se prepara para um longo e tenebroso inverno. Será o primeiro desde o início da guerra na Ucrânia e da disparada do custo de vida.
Em Bruxelas, sede da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia, que impôs novas sanções à Rússia, só se fala no custo alto que o conflito impõe ao velho continente. É o que as famílias discutem à mesa, em casa, na rua, o tempo todo. “Só posso sair depois de assistir ao noticiário. Você está acompanhando o que está acontecendo? Foram-se os tempos de paz. Voltei a ter medo de uma guerra nuclear. Vou dispensar as duas horas semanais da diarista. Ela não tem culpa, coitada. Não sei onde mais cortar para pagar a conta de energia”, afirma a aposentada Christine Massot, na capital belga, onde até as crianças se envolvem no debate sobre a dependência do gás da Rússia. “Quero ir para o Brasil. Lá não precisa usar calefação”, diz Marc, de 8 anos, enquanto confere se a porta de casa ficou bem fechada para não desperdiçar calor.
Por todo o continente, as mudanças de hábito são evidentes em menor ou maior escala. Isso pesa cada vez mais na maneira como as populações se enxergam e como respondem às consequências do conflito, da inflação, da mudança do clima, ou qualquer outro tipo de perturbação na vida cotidiana. O entusiasmo em receber os refugiados ucranianos, por exemplo, ainda é grande, mas começa a perder força, segundo a mais recente pesquisa de opinião realizada pelo Parlamento Europeu com os 27 países-membros em setembro deste ano.
Já há quem tenha retomado práticas do passado, como estocar lenha por medo de faltar gás no inverno, seja pelos preços proibitivos, seja pelo temor de o presidente da Rússia, Vladimir Putin, mandar fechar as torneiras, como tem feito. Na Alemanha, manter as lareiras acesas vai custar duas vezes mais em cidades como Munique. De acordo com o Escritório de Estatísticas Federais, em agosto deste ano, a lenha e a serragem passaram a custar 86% a mais em média. Mais da metade das residências alemãs dependem do gás russo.
Na Inglaterra, onde há mais autonomia, o órgão regulador já avisou que é possível haver cortes de até três horas diárias de energia no auge do inverno. Mais grave do que isso, famílias inteiras admitem que não pretendem ligar a calefação por não ter como pagar a conta, que subiu mais de 300% em menos de dois anos. A ameaça pode complicar ainda mais a situação já frágil do sistema de saúde nacional, que, ainda sobrecarregado pelas consequências da pandemia, enfrenta a chegada de nova temporada de alta dos casos de coronavírus, gripe e bronquiolite. No país onde o NHS, a sigla em inglês do sistema gratuito de saúde britânico que inspirou o SUS no Brasil, é considerado sagrado e intocável, as pessoas começam a recorrer a médicos privados. Crescem os anúncios de planos de saúde, o que seria impensável até pouco tempo atrás.
O velho continente tenta, a passos acelerados, mudar suas fontes de energia. Eólicas e placas solares ocuparam uma fatia recorde de 24% do total da matriz da União Europeia desde o início da guerra russa na Ucrânia. Na estrada entre Londres e Paris, as imensas torres das eólicas dominam a paisagem como nunca. Em muitos vilarejos franceses, são motivo de revolta. Existe um debate acalorado no país sobre a estética e o impacto desses imensos equipamentos na vida da sociedade.
O crescimento de fontes renováveis gerou uma economia aos 27 países do bloco de € 99 bilhões (pouco mais de R$ 540 bilhões) em importações de gás russo. Certamente uma boa notícia para um continente que depende em boa medida da commodity para se aquecer, e cuja inflação mostra os dentes como não fazia desde as grandes guerras. Mas ainda aquém do necessário. Mudanças como essas, contudo, não acontecem da noite para o dia e não dependem apenas de infraestrutura ou tecnologia.
“Deixar o gás é muito mais do que uma questão técnica. Vai exigir um entendimento da relação emocional e cultural da sociedade com o combustível. Convencer as pessoas a adotar novas tecnologias e novos comportamentos que ajudem a reduzir as emissões domésticas de carbono vai mexer com o conceito que se tem de vida moderna e sua relação com o gás”, explica ao Valor Sam Johnson-Schlee, especialista em geografia humana e planejamento das cidades da Universidade London South Bank.
Com doutorado em geografia urbana e antropologia, o acadêmico se dedica a escrever sobre política e a cultura e hábitos do dia a dia. Foi assim que entendeu que o processo de transição energética por que passa a Europa terá de replicar o grande investimento realizado na Inglaterra na década de 1960, quando a população teve de ser convencida de que o novo tipo de gás que abasteceria suas residências significava mais conforto e era mais compatível com a vida moderna do que o gás vindo do carvão.
Luz e fornos a gás foram a tecnologia de ponta do início do século XIX. O gás alimentou a revolução industrial, nascida na Inglaterra. Permitiu que as fábricas trabalhassem até tarde da noite. A primeira companhia de gás no país foi fundada em 1812. Mas, depois da Segunda Guerra Mundial, a indústria percebeu que precisava mudar sua imagem. Além de desenvolver métodos mais limpos de produzir gás e importar gás liquefeito natural, investiu em uma grande campanha de publicidade para melhorar a sua reputação. A ideia era mostrar o combustível do futuro: “Algo incrível está para acontecer com o gás”, diziam cartazes da época. A mensagem para o consumidor era clara: “As refeições ficarão prontas mais depressa, as casas serão mais aquecidas, vidas inteligentes são vividas com gás”.
Para Johnson-Schlee, que tem pesquisado a publicidade do período, a atual disparada da inflação, movida sobretudo pela alta dos preços do gás, pode até facilitar esse trabalho de convencimento, mas não é suficiente para mudar o comportamento em definitivo. “Quando o preço cair, voltaremos ao padrão anterior, se nada for feito”, diz. Para ele, a sociedade não está preparada para o que uma mudança desta natureza pode significar.
“Em momentos de crise aguda, a gente acaba questionando e alterando muito do que aprendemos por vários anos”, destaca. Mas a indústria precisa perceber que a mudança passa necessariamente pela relação que temos com o lar. “Se o governo e a indústria querem estimular a transformação, se há o desejo de reduzir o uso de gás de fato, não se pode apenas dizer às pessoas: ‘parem de usá-lo’”, afirma o professor.
Novas formas de aquecer as residências podem significar, por exemplo, a redução da temperatura média da casa em dois a três graus. E isso terá implicações sobre como as pessoas usam as suas casas. Pesquisa da Electrical Safety First, entidade filantrópica voltada à prevenção de acidentes elétricos, indica que 42% das pessoas estão considerando usar um aquecedor elétrico para manter o calor em um único cômodo da casa para economizar com a calefação central.
“Com a possibilidade de trabalhar de casa, minha mulher e eu hoje dividimos o mesmo cômodo, porque fica mais quente. Tudo isso tem impacto sobre como aproveitamos nossa vida doméstica, as horas de lazer. Se você quer que as pessoas usem bombas de calor, se essa for a tecnologia escolhida, haverá grande mudança na sensação de bem-estar dentro de casa. Não vai estar tão aquecido”, destaca Johnson-Schlee.
Ele lembra que, por falta de alternativa, a população mais pobre já enfrenta a difícil escolha entre alimentar e manter aquecida a sua família, mesmo sabendo dos riscos à saúde e à vida. A classe média, contudo, que não tem a mesma sensação de ameaça à vida, não vai querer abrir mão da sua noção de conforto. “Em países como o Reino Unido, onde se viveu por mais de uma década a era da austeridade, as pessoas não querem perder mais nada”, explica.
“A casa será ambiente de ausência de frio em vez de ser o lugar onde há calor. Por isso, a estratégia para os negócios em termos de transição é pintar um quadro de como será a nova vida moderna a que se aspira e não apenas uma resposta punitiva para outra crise”, diz. Também não adianta achar que as pessoas vão mudar de carro de uma hora para a outra. “Hoje, os carros elétricos ainda estão limitados a um universo de consumidores de alta renda”, ressalta.
A disparada da inflação no Reino Unido, que há meses se mantém em dois dígitos, no mais alto patamar acumulado em um ano das últimas quatro décadas, deve reduzir o padrão de vida da população como ainda não se via desde o início da série histórica, em 1978. Isso tem implicações sobre as esperadas mudanças de comportamento do consumidor. Ele vai deixar para adquirir seu carro elétrico depois, ou nunca, ou vai abrir mão de comprar aqueles produtos mais caros que parecem ser mais sustentáveis.
Um grande percentual da população pelo mundo começa a se interessar mais por marcas genéricas de supermercados, sempre mais baratas, do que aquelas mais conhecidas e badaladas. O diretor de mercado da firma de pesquisa IRI Marketplace, Ananda Roy, especialista em grandes dados, afirma que os novos hábitos de consumo na Europa e nos Estados Unidos replicam as velhas práticas de austeridade adotadas pelas famílias nas décadas de 1970 e 1980. “É o resultado de uma mudança de atitude e de perda do poder de compra. Achamos que é algo que vai permanecer, já que não há tendência de aumento de salários ou qualquer sinal de que os altíssimos preços de alimentos e energia vão ceder em 2023”, diz.
O especialista lembra que duas gerações inteiras, que nunca tiveram de apertar de fato os cintos, terão de aprender a lidar com a escassez e queda na qualidade de vida. “Precisam planejar para frente, contar o dinheiro, mudar como e onde compram e, em muitos casos, deixar para comprar depois, ou simplesmente não fazê-lo. Não podem mais adquirir itens da moda, tirar férias, ir a restaurantes e cafés regularmente, frequentar academias de ginástica ou manter a assinatura da Netflix, ir ao teatro e shows”, afirma Roy.
Por isso, voltam à cena a boa e velha marmita levada de casa para o trabalho, ou os ajustes nas roupas de sempre para que tenham sobrevida. Hoje, na Europa, pequenos consertos em itens do guarda-roupa ou em aparelhos eletrodomésticos costumam ser desaconselhados pelos próprios especialistas. Podem custar mais caro do que o item novo. “Como esse período de inflação alta não é temporário, devendo durar pelo menos três anos, as alterações de comportamento devem mudar a atitude consumista de muitos”, explica.
A pesquisa mais recente do IRI mostra que 35% dos europeus estão usando a poupança que fizeram durante os períodos de quarentena na pandemia para pagar as contas no fim do mês. Estão também usando mais cartão de crédito ou pedindo empréstimos. Em alguns mercados, como na Holanda, onde a inflação está atualmente em 14% ao ano, aumentou a oferta de empréstimos sem garantia.
Não por acaso, empresas especializadas e até bancos começam a promover campanhas de educação nas estações de rádio para que as pessoas descubram como cortar custos de maneira eficiente. Novidade recente no Reino Unido, o sistema de parcelamento, que ficou conhecido como Compre Agora, Pague Depois (BNPL, na sigla em inglês), ganhou vulto. São vendas a prazo, em princípio sem juros. Mas as dificuldades dos consumidores e a inflação começaram a provocar distorções nesse mercado que preocupam o governo. Neste momento, discute-se uma forma de regular o segmento e evitar os prejuízos dos consumidores com um crescente nicho de agiotagem disfarçada.
Novos comportamentos surgem com novas oportunidades, segundo Benjamin Voyer, catedrático da Escola de Finanças ESCP e professor visitante do departamento de Ciência da Psicologia Comportamental da London School of Economics (LSE). Ele lembra que as crises recentes tiveram sinais trocados sobre a oferta e a demanda, o que dificulta o entendimento, no curto prazo, de quais hábitos vieram para ficar. Se a pandemia levou as pessoas a gastar menos e a querer comprar mais, a alta inflação agora diminui o ímpeto consumista de muitos. Ele não acredita que a Europa vá viver um novo normal inflacionário. Mas garante que atacadistas e varejistas vão reagir ao novo comportamento dos consumidores para se adequar à demanda.
Muitas marcas estão reduzindo o tamanho das embalagens dos produtos ou quantidade que oferecem de determinado item para que caiba no bolso do cliente. Voyer destaca ainda que a mudança de comportamento não necessariamente é linear. Pode acontecer por geração, por exemplo. Desde a pandemia, os jovens se deram conta de que o streaming de filmes pode ser mais em conta e divertido do que ir ao cinema, enquanto parte da população mais velha que nunca tinha comprado pela internet acabou incorporando o novo hábito. Mas as compras online, segundo ele, não substituem a experiência de bater perna e olhar as vitrines. “Comprar pela internet é fazer uma transação objetiva, enquanto ir à loja é entretenimento.” O que move os instintos do consumidor continuam, segundo ele, sendo a escolha, a variedade, a flexibilidade e a liberdade. “O consumidor gosta do que é simples e fácil de se adaptar”, diz.
A pandemia mudou os hábitos de consumo no Reino Unido de tal maneira que o Banco da Inglaterra, o BC britânico, precisou refazer o cálculo do peso dos itens que compõem a cesta de inflação para medi-la melhor. Precisou incluir itens que antes sequer estavam na lista de prioridades da população, como roupas mais à vontade para se trabalhar de casa, equipamentos de ginástica e certos alimentos.
O mesmo aconteceu com o trabalho remoto. Muita gente (que pode se dar o luxo) agora prefere ir ao escritório muito de vez em quando. Na lista de benefícios da novidade, essas garantem ter uma vida mais confortável e saudável. Também alegam ganhar tempo e produtividade ao evitar os longos deslocamentos até o escritório, além de economizar em passagens e combustível. O Reino Unido, por exemplo, é um dos países onde os trabalhadores mais gastam com o transporte público no mundo. Quem vive em uma cidade a cerca de 40 quilômetros da capital pode gastar mais de 400 libras (quase R$ 2.500) por mês em trens e metrôs.
De acordo com a pesquisa de mercado Medallia apresentada no webinar “The Biggest Consumer Trends of 2022”, depois de uma queda importante após o início da crise pandêmica em 2020, a parcela de empregados em tempo integral que continua trabalhando de casa se mantém elevada em pouco mais de 30%. Também não teria caído o novo hábito de encomendar vegetais e refeições de restaurantes.
Outra mudança a ser observada ao longo do tempo está no aumento do número de cremações, em resposta às dificuldades sanitárias impostas pela pandemia do coronavírus, que impediram a realização de funerais e outras cerimônias de despedida de entes queridos. A aceitação por esta modalidade, que teria crescido entre comunidades de religiões distintas, indica que há um número maior de famílias que a consideram como primeira opção em tempos de inflação alta. No Reino Unido, a empresa Distinct Cremations afirma em relatório que “a disparada do custo de vida pode ter mudado a forma como as pessoas veem a vida após a morte”.
O cientista político grego e professor de governo do All Souls College da Universidade de Oxford, Kalyvas Stathis, alerta que o mundo está em constante movimento e que é preciso um período de tempo mais longo para se observarem mudanças definitivas nas sociedades. Ele afirma que as pessoas tendem a imaginar que vivemos mais crises do que no passado. “Não há como se medir se há mais crises ou se são mais intensas hoje do que antes”, diz.
Stathis garante que a sensação de que são crises que se emendam umas nas outras deve ser muito mais atribuída ao excesso de informações a que estamos submetidos e mais notícias ruins, que, segundo ele, costumam ganhar mais destaque na mídia. O que acontece, na avaliação dele, é que os seres humanos tendem a se adaptar às condições dadas pelas crises, mas depois esquecem as mudanças. “A gente superestima o impacto que as crises podem ter nas nossas vidas e depois esquecemos. Não prestamos mais atenção quando as condições mudam. Falamos no novo normal no início da covid. E agora ninguém tem muito a sensação do que mudou de fato”, destaca Stathis.
Mesmo assim, ele reconhece alterações inegáveis de comportamento que os especialistas ainda terão de esperar para saber se são definitivas. “Não sabemos quantos porcento da população vão continuar trabalhando de casa. Se for um percentual importante, vai mudar as relações de trabalho, a estrutura da família e a cultura. Muitas crianças tiveram a saúde mental afetada pela pandemia. Será que estamos diante de uma geração com problemas? Até que ponto e quão sérios serão?”, afirma. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) indicam que cerca de 24 milhões de estudantes entre o primário e a universidade correm o risco de não voltar para os bancos escolares. E estimam que cerca de 25% da população passou a ser acometida por ansiedade, com jovens e mulheres entre os mais afetados.
As reuniões por Zoom, segundo ele, que até certo ponto pareciam uma nova tendência mundo afora, aumentaram a velocidade da conexão entre as pessoas, possibilitaram mais encontros e economia de deslocamento. “Mas também cansaram, pois ficou fácil demais marcar muitas reuniões o dia inteiro e por muito tempo. Pode ser que o novo comportamento que vai se cristalizar seja o de priorizar este tipo de reunião, mas com comedimento e com duração mais curta”, afirma.
Com o avanço da tecnologia nas últimas duas décadas, Stathis enfatiza que muitas pessoas já não sabem mais usar as mãos, não escrevem. Tudo se passa nas telas de aparelhos. A internet cria a possibilidade inédita de se ter muitos pedaços de informação, ao mesmo tempo que tira o foco do todo. “As coisas estão se movendo em diferentes direções. A vida está sempre nos surpreendendo. É um momento interessante de se observar”, diz. Talvez seja sintomático o fato de “metaverso” estar entre as finalistas e ser escolhida como palavra do ano de 2022 pelo Dicionário Oxford.
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