Não existe mais um “chefe” vigiando o trabalho, mas sistemas mais sofisticados de controle


O colunista Claudio Garcia avalia que, enquanto as pessoas celebravam a possibilidade de ter mais flexibilidade no pós-pandemia, acabaram ganhando mais controles

Cláudio Garcia – Valor – 08/09/2022 

Traços de cultura em organizações geralmente levam tempo para mudar. Alguns deles são parte de crenças tão profundas, quase impossíveis de serem transformadas. No início da minha experiência profissional, não era incomum que ficássemos na empresa até que o “chefe” saísse. Se ele ou ela ficava até meia-noite, saíamos algum tempo depois, para ter certeza de que tinha dado tempo dele ou dela ter saído do estacionamento.

“Face time”, em outras palavras: parecer que se está produzindo algo mesmo sem necessidade, é um problema antigo. Aliás, é uma prática tão arraigada na cultura corporativa que, ao longo do tempo, passou a influenciar diretamente em bônus e promoções, às vezes mais do que a performance.

Muitos anos depois, fomos abalados por uma pandemia – e pela necessidade de manter o nível de produtividade mesmo fora do escritório. A adesão ao remoto e híbrido aceleraram. A mensagem de muitos artigos no início era a de que “líderes precisavam repensar abordagens de gestão”, e que “a confiança deveria estar no centro”.

    Mas, sendo repetitivo, alguns traços de cultura são difíceis de mudar. E, sutilmente, se adaptam a novos contextos. Enquanto as pessoas celebravam a possibilidade de ter mais flexibilidade, acabaram ganhando mais controles.

Uma recente reportagem do “The New York Times” mostra como organizações aceleraram a adoção de ferramentas de produtividade na pandemia. Essas ferramentas são utilizadas para registrar e ranquear o quanto as pessoas ficam em frente a um computador ou dedicadas a uma tarefa.

A tendência já vinha de antes. Um caso bastante noticiado foi o da Amazon, que utilizava algoritmos para tomar decisões sobre profissionais em seus armazéns. O tema provocou reações dos trabalhadores que chegavam a ser demitidos sem que a empresa soubesse o que tinha gerado redução de produtividade.

A reportagem do “The New York Times” cita, ainda, quão limitados são esses sistemas para mensurar atividades relacionais ou de reflexão, tão necessárias para profissões do conhecimento. Esses sistemas não computam como produtivas horas de mentoria e aprendizado, ou um atendimento mais longo a um paciente idoso. Pessoas se adaptam também: são comuns os relatos de quem mantém o status “disponível” em aplicativos enquanto estão jantando, ou até aquelas que movimentam o mouse para registrar que estão presentes.

Mesmo com o retorno ao escritório, a adoção dessas ferramentas continua crescendo, e rapidamente estão sendo utilizadas por áreas que não são possíveis de migrar para o trabalho remoto (que, por sinal, é a grande maioria).

    Observamos um intenso experimento de terceirização do “face time”: não existe mais um “chefe” vigiando colaboradores, mas sim, sistemas.

Como essa coluna já comentou em artigos passados, tecnologias são apenas reflexos dos nossos modelos mentais – com a diferença de terem o poder exponencial de acelerar efeitos nocivos. Não à toa essas ferramentas estão diretamente associados aos crescentes casos de burnout, ansiedade e depressão no ambiente de trabalho. Ironicamente, empresas nunca contrataram tanto serviços e consultorias para promover saúde mental e bem-estar. Essa conta simplesmente não fecha.

Confiança é um componente essencial para promover bem-estar e progresso sustentável. Considerando as exceções, confiança é ainda uma oportunidade a ser melhor explorada em organizações.  Confiar que alguém será responsável o suficiente para realizar o seu trabalho parece ser uma mudança grande demais para acontecer. No mínimo é algo para refletir.

Claudio Garcia é professor adjunto de gestão global na Universidade de Nova York

https://valor.globo.com/carreira/coluna/nao-existe-mais-um-chefe-vigiando-mas-sistemas.ghtml

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Um comentário em “Não existe mais um “chefe” vigiando o trabalho, mas sistemas mais sofisticados de controle

  1. Interessante que há 2 semanas atras vocês publicaram que o home office estava sendo sendo usado não só para atividades da empresa como tambem sendo usado para empreender para uma outra empresa – e nisso eu acredito – até porque o profissional poderia dobrar seu salario… ou estou errado?

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