“Internet paralela” e isolada do restante do mundo ajuda Rússia a enfrentar sanções, dizem especialistas
Por Denis Kuck — Valor 07/03/2022
A Rússia construiu, principalmente depois das revelações do ex-agente americano Edward Snowden, um sistema de comunicações batizado de ru.net que pode funcionar desconectado da internet comercial global, o que permite ao país manter alguns serviços digitais aos cidadãos e se proteger de ataques cibernéticos. Essa rede independente, dizem especialistas, foi montada por questões estratégicas e de proteção em casos de conflito, como agora na guerra com a Ucrânia.
Luca Belli, pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV), afirma que as sanções internacionais impostas contra Moscou pela invasão à Ucrânia são mais fortes do que se imaginava, mas esse sistema de comunicações ajuda a Rússia a “sobreviver” ao isolamento, ainda que com dificuldade.
Para Claudio Miceli de Farias, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a questão da “soberania digital” terá que ser enfrentada nos próximos anos pelos Estados, inclusive o Brasil, tendo em vista a maior importância da conectividade no dia a dia e, até mesmo, nas crises geopolíticas.
“O Snowden não está de férias na Rússia”, diz Belli, que é professor da FGV Direito Rio e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV. Após revelar, em 2013, segredos de espionagem dos Estados Unidos – que envolveria até mesmo a intercepção de comunicações da ex-presidente Dilma Rousseff -, o ex-funcionário da Agência Nacional de Segurança (NSA) buscou exílio na Rússia.
“Os russos entenderam que eram vulneráveis e estão construindo, há pelo menos oito anos, a possibilidade de desconectar seu segmento da internet global”, diz Belli. “É questão de política pública de cibersegurança. A abertura da internet poderia causar vulnerabilidades, sobretudo em caso de conflito. No exílio, Snowden ajuda os russos a identificar esses riscos.”
Farias explica que a internet é uma “rede de redes”, com diversos provedores operando ao redor do mundo. “Países como Rússia e China, no entanto, têm controle maior do tráfego de sua rede e, caso se desliguem da internet, têm uma estrutura interna de comunicação, aplicativos e serviços”, diz o professor do Instituto Tércio Pacitti e do Programa de Engenharia de Sistemas e Computação da UFRJ.
A capacidade de se desligar da rede global garante a manutenção de alguns serviços em caso de sanções tecnológicas, aplicadas contra a Rússia desde 2014, após anexação da Crimeia. À época, o sistema Visa e Mastercard foi bloqueado na região, o que fez Moscou adotar um sistema de pagamento eletrônico próprio, chamado Mir.
“Imagina o imposto de renda. Se o cidadão quer entregar a declaração, isso não é afetado pelo fato de não haver internet externa. Não ter essa dependência de infraestrutura é algo muito poderoso”, afirma Farias.
Essa resistência, no entanto, não é ilimitada. Para Belli, as sanções internacionais contra Moscou podem ter sido mais fortes do que o presidente russo, Vladimir Putin, previa. “A Rússia se preparou para continuar a funcionar, diminuindo a dependência da tecnologia estrangeira. Porém, os russos estão vendo como fazer isso é difícil, eles não têm uma autonomia total, como a China”, diz. Belli pesquisa e organiza um estudo sobre cibersegurança nos países do Brics.
Para Farias, a digitalização de todos os setores da sociedade, inclusive de segurança, será aprofundada com o 5G e vai obrigar os países a elaborar políticas públicas de “soberania digital”. Segundo ele, os Estados Unidos também têm essa preocupação: “Apesar de [os EUA] serem superabertos e da disputa acirrada das operadoras, há um controle estatal sobre a infraestrutura de comunicação”, diz.
Integrantes das Forças Armadas do Brasil discutem o assunto, mas o tema não é uma questão de Estado, diz Farias. “Não vemos isso como um problema. Ainda. Essa pode ser uma das consequências desse conflito: os países olharem para sua infraestrutura de tecnologia da informação e enxergarem um desafio para as próximas décadas. Até onde vai a internet comercial e até onde vai uma internet de valor, estratégica para o país”, diz.
Farias ressalta que o Exército brasileiro tem uma rede separada da internet comercial. “Isso é o que podemos chamar de deep web, sempre associada a ataques hackers, a algo negativo, mas que, na verdade, pode ser apenas outro tipo de estrutura”, afirma.
Para Belli, na Europa, a questão da “soberania digital” passou a ser mais discutida recentemente. “Eles se deram conta de que são totalmente dependentes da tecnologia americana.” No Brasil, o pesquisador afirma que o assunto foi abandonado. “O país promovia a tecnologia de software livre, que evita a dependência tecnológica, é libertadora. Atualmente, há o uso maciço de softwares americanos.”
Danilo Bragança, doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense e especialista em defesa, diz que o Exército brasileiro passou a desenvolver programas institucionais para garantir certa autonomia digital, sobretudo após o caso Snowden. “Foi criado um centro de defesa cibernética. Mas nosso sistema é frágil, os recursos são poucos. O país não se deu conta da importância do assunto, tanto no âmbito de governo civil, haja vista o vazamento de dados como os do Sistema Único de Saúde, como militar.”
Bragança diz que a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) ganhou proeminência sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, assumindo funções de defesa cibernética que, segundo o especialista, deveriam ser do Exército, segundo a Política Nacional de Defesa (PND) e a Estratégia Nacional de Defesa (END).
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