Valor 1000: Régua das startups foge ao tradicional


Os modelos de avaliação de empresas ganham nova nomenclatura e não medem apenas geração de caixa, mas olham a capacidade de conexão

Por Danylo Martins, Valor 30/09/2021 

As métricas tradicionais de avaliação de empresas vêm sendo desafiadas pelos negócios da nova economia. Esqueça o lucro ou a geração de caixa no presente. Não à toa, é bastante comum que startups apurem perdas na última linha do balanço, mas seu potencial exponencial de receita futura e o relacionamento com os usuários fazem com que muitos negócios tenham “valuations” bilionários aos olhos de investidores de capital de risco, o chamado venture capital.

A queima de caixa – algo impensável para modelos de negócio tradicionais – deixa de ser vista como um problema e passa a ser encarada como parte do desenvolvimento e crescimento da empresa. A capacidade de conexão e engajamento com a base de clientes costuma ser mais relevante do que medir os ativos fixos, por exemplo. O que leva ao uso de novas métricas ou indicadores-chave de desempenho (os chamados KPIs) para entender como o negócio está crescendo, mas principalmente qual a expectativa de retorno no médio e longo prazos.

“Mas é importante que esse potencial tenha premissas que façam sentido e sejam factíveis para os investidores”, diz a economista Itali Collini, diretora de operações da 500 Startups no Brasil. Misto de aceleradora de startups e fundo de venture capital, a 500 Startups já aportou recursos em mais de 2,4 mil startups globalmente e soma 27 unicórnios na conta, entre os quais nomes como Canva, Credit Karma e Udemy. No Brasil, tem mais de 40 investidas, incluindo Conta Azul, Olist, Pipefy, entre outras.

As premissas se traduzem em indicadores variados. Um dos principais deles é o custo de aquisição de cliente (CAC), que basicamente mede o gasto da empresa para conquistar novos clientes ou usuários, dividido pela quantidade de novos clientes em igual período. Ou ainda o chamado lifetime value (LTV) – que pode ser traduzido como o valor do ciclo de vida – também varia conforme o setor ou tipo de negócio.

A relação entre LTV e CAC, ou seja, o lucro gerado pelo cliente dividido pelo seu custo de aquisição, é outra métrica bastante utilizada pelas startups. Na prática, quanto maior essa relação, maior será a geração de valor oriunda do investimento feito na aquisição de clientes. Normalmente, investidores esperam que essa relação seja de, no mínimo, três, isto é, o cliente traz R$ 3 de lucro a cada R$ 1 gasto para convertê-lo.

Outro indicador importante é o “cash burn rate”, ou queima de caixa, que mede a velocidade com que a startup gasta recursos financeiros, antes de começar a gerar ganhos. É o “cash burn rate” que vai ajudar a definir o “runaway”, também conhecido como pista de decolagem. “Significa quantos meses uma empresa tem até que acabe seu dinheiro e é calculado dividindo o valor que ela tem em caixa pelo cash burn rate.”

Todas essas métricas e outras fazem parte do dia a dia de startups e fundos de venture capital, um ecossistema que está passando por forte aceleração nos últimos anos. Em 2020, essas empresas nascentes captaram mais de US$ 3,5 bilhões em 522 rodadas, segundo dados da empresa de inovação Distrito. De janeiro a agosto deste ano, foram 457 aportes, que, somados, representam US$ 6,6 bilhões, volume que já supera em mais de 85% o acumulado de 2020. Nesta conta, estão “megarrodadas” realizadas por três unicórnios (startups avaliadas em mais de US$ 1 bilhão): Nubank, Loft e Ebanx.

Para discutir as métricas de avaliação de startups, o Valor procurou 16 unicórnios brasileiros. Apenas cinco deram entrevista. Creditas, C6 Bank, Gympass, iFood, Loft, Loggi, MadeiraMadeira, Nubank e Wildlife Studios não quiseram participar. Alguns alegaram dificuldade de agenda dos porta-vozes, outros disseram não comentar KPIs e métricas de desempenho. Hotmart e QuintoAndar não retornaram ao contato feito pela reportagem.

É importante ressaltar que alguns fizeram rodadas de captação recentemente – em junho, o Gympass levantou US$ 220 milhões e passou a ser avaliado em US$ 2,2 bilhões; em agosto, foi a vez do QuintoAndar captar uma extensão de US$ 120 milhões da rodada Série E, o que o levou a um valuation de US$ 5,1 bilhões. Há casos ainda de unicórnios que, embora não comentem sobre indicadores de desempenho, estão prestes a fazer abertura de capital nas bolsas americanas – o Nubank prepara seu IPO, com objetivo de levantar de US$ 3 bilhões a US$ 5 bilhões, com valuation que pode chegar a US$ 100 bilhões, conforme apurou o Pipeline, site de negócios do Valor.

A Movile – investidora de iFood, MovilePay, Mensajeros Urbanos, Moova, Sympla, PlayKids, Zoop, Afterverse e Sinch – atingiu o status mítico de unicórnio em 2018. Em agosto, a empresa recebeu um aporte de US$ 200 milhões (cerca de R$ 1 bilhão, no câmbio da época), liderado pelo grupo global de internet Prosus, principal investidor do negócio desde 2008. Com o recurso, a Movile planeja seguir investindo nas empresas do portfólio, com foco nas verticais de fintech, logística e games.

“Somos construtores de teses. Gostamos primeiro de olhar para potencial e aceleração de algum mercado e, em seguida, buscamos as empresas”, explica Rafael Lauand, head de estratégia e M&A da Movile, cuja receita teve crescimento médio anual de 80% nos últimos três anos. Feita a análise setorial, a empresa passa a analisar o potencial de geração de receita de cada negócio, naquele mercado em que atua, e o chamado “take rate” (percentual de quanto ganha a cada transação).

Para ele, embora as métricas de avaliação de startups mudem em relação aos indicadores utilizados por empresas tradicionais, a análise sempre vai retornar para a geração de caixa. “Não diria que é um novo jeito de analisar empresas, mas sim uma nova ótica. No fim das contas, estamos falando de geração de caixa, fluxo de caixa futuro, e o investidor vai sempre olhar para o retorno do investimento”, observa.

Lauand destaca que o comportamento da base de clientes é extremamente importante para a startup. Essa evolução pode ser medida por meio da chamada análise “cohort”. Por meio desta métrica, é possível avaliar se o tempo de conversão de um cliente diminuiu ou aumentou, ou ainda se houve alta no tíquete médio transacionado por determinado grupo de clientes.

Também avaliado em mais de US$ 1 bilhão desde 2018, o iFood tem como principais indicadores de desempenho LTV, CAC, taxa de retenção e frequência da base de clientes. “Diferentemente das empresas tradicionais, focamos no resultado que o cliente trará no médio e longo prazos, por isso o LTV, o crescimento da base de clientes e a frequência são extremamente importantes”, explica Douglas Kayassima, diretor de financial planning and analysis (FP&A) do iFood.

O aplicativo de delivery também mensura a mudança de segmentação dos clientes, de acordo com o maior engajamento que eles adquirem com o serviço. A empresa calcula, ainda, o volume transacionado em mercadorias (GMV, na sigla em inglês), além de indicadores financeiros, como receita líquida, margem de contribuição e margem Ebitda. 

Na visão de André Boaventura, chief marketing officer (CMO) do Ebanx, as métricas usadas por startups normalmente são criadas para medir alto crescimento em curto espaço de tempo. Daí a importância de mensurar quanto se pode investir mais agora para capturar valor o mais rápido possível. Se o custo de aquisição é substancialmente menor que o ciclo de vida, significa que se pode investir esse dinheiro, porque lá na frente mais receita vai voltar, aponta Boaventura.

No caso do Ebanx, uma fintech de pagamentos, um dos principais indicadores é o volume total processado (TPV, na sigla em inglês), junto com taxa de conversão, taxa de aprovação de cartão, taxa de chargeback, além dos próprios CAC, LTV e “churn rate”, entre outros. O uso destas métricas varia conforme o porte do cliente que a fintech atende. Por ter um foco grande em clientes “enterprise”, o que pesa muito mais é a saúde do relacionamento e o quanto esses grandes clientes trazem de processamento para o Ebanx, do que a porcentagem de perda de clientes em toda a base.

Segundo Boaventura, para companhias do perfil “enterprise”, a mensuração de CAC e LTV é mais difícil, porque há casos de clientes que podem levar meses ou anos para fazer a integração com a plataforma da fintech. “Portanto, um CAC altíssimo”, diz. A fintech tem uma oferta de produtos e serviços que atende também pequenas e médias empresas (PME). Para estas, sim, CAC, LTV e MRR (receita recorrente mensal) são alguns dos principais indicadores.

Ao todo, a fintech tem mais de mil clientes, entre os quais AliExpress, Airbnb, Uber e Spotify. No total, mais de 70 milhões de consumidores latinos já compraram em sites globais com as soluções do Ebanx. Desde que foi fundado, já recebeu três investimentos – o mais recente deles, anunciado em junho, foi um aporte de US$ 430 milhões feito pela gestora de private equity Advent International.

Quem também recebeu um cheque recentemente foi a unico, startup com soluções de proteção de identidade digital. Com a rodada Série C de R$ 650 milhões liderada pelo SoftBank e pela General Atlantic (GA), a IDTech passou a valer US$ 1,1 bilhão, entrando para a lista dos seres míticos unicórnios. Com foco no B2B, especialmente grandes empresas, a startup tem como foco o indicador de receita recorrente anual (ARR, na sigla em inglês), além de margem bruta dos produtos.

“Temos um ‘churn’ zero, ou seja, não perdemos clientes ou, dependendo da interpretação, ele é negativo, ao olhar pela receita; o que implica que nossos indicadores de CAC e LTV não necessariamente refletem uma realidade que possa ser interpretada na íntegra”, explica Paulo de Alencastro Jr., cofundador e vice-presidente de relações com investidores da unico.

Em relação aos indicadores financeiros, a unico tem como prática utilizar margem Ebitda para acompanhar o quanto a companhia está consumindo de sua geração de recursos. Além disso, acompanha a satisfação dos clientes, assim como o Customer Satisfaction Score (CSAT) para mensurar a satisfação dos usuários com os produtos.

No primeiro semestre, a empresa mais do que dobrou de tamanho, em relação a igual intervalo de 2020. As vendas de produtos cresceram cinco vezes, na mesma base de comparação. De janeiro a junho, a unico barrou mais de 900 mil ações fraudulentas contra consumidores em todo o Brasil, por meio da sua solução de autenticação por biometria facial. Em valores, foram evitados R$ 22 bilhões em prejuízos, diz o executivo.

Primeira startup brasileira no mercado de criptoativos a ser classificada como unicórnio, a corretora Mercado Bitcoin alcançou o status também neste ano, ao receber um cheque de US$ 200 milhões (cerca de R$ 996,5 milhões, no câmbio da época), também do fundo japonês Softbank. Com o investimento, chegou a um valuation de US$ 2,1 bilhões e é mais um unicórnio que figura na lista de pretendentes a um IPO.

“Nosso negócio tem características bastante específicas, com perfis muito distintos de clientes, atividades relacionadas a variáveis externas de mercado”, destaca Daniel Cunha, diretor de desenvolvimento corporativo do Mercado Bitcoin, hoje a maior plataforma de negociação de criptomoedas e ativos alternativos da América Latina, com 2,9 milhões de  clientes e mais de R$ 40 bilhões negociados desde a criação, em 2013.

O executivo cita como métrica central do negócio o LTV. Dele, deriva uma cadeia de KPIs determinantes para a formação dessa métrica: custo de aquisição, frequência, mix de produtos, satisfação, além de alguns específicos à atividade. Os principais indicadores divulgados pela empresa apontam um crescimento acelerado e saudável, segundo Cunha. No terceiro trimestre deste ano, até 26 de agosto, o volume de “trading” no Mercado Bitcoin triplicou quando comparado ao volume total de 2020. Até agosto, a base de clientes saltou 50%, na comparação com o número apurado em dezembro do ano passado.

A nova economia trouxe, sem dúvida, um olhar diferente para como são avaliados os resultados de empresas. É possível notar que os conceitos tradicionais continuam sendo usados e, à medida que startups se transformam em negócios maiores e abrem capital, naturalmente passarão a divulgar dados financeiros periodicamente.

Como apontaram em seu artigo (página 66) os professores Claudia E. Yoshinaga, Ricardo R. Rochman e William Eid Junior, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP), “as métricas antigas continuam a ser utilizadas, mas as novas é que governam os investimentos nas startups. O interessante é o foco recorrente dessas métricas no relacionamento com o cliente ou usuário”.

https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/09/30/valor-1000-regua-das-startups-foge-ao-tradicional.ghtml

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