A tendência é que as áreas de atuação dos profissionais se mesclem cada vez no futuro próximo
Por Stela Campos — Valor – 17/05/2021
Mais de um ano após a pandemia, e com algumas organizações optando por aderir ao modelo totalmente a distância, é o trabalho híbrido, mescla entre presencial e remoto, que aparece como a tendência mais forte em todo o mundo no possível retorno aos escritórios. A decisão de segui-lo, no entanto, não surge apenas da cúpula das organizações. Profissionais que experimentaram o home office, mesmo que emergencial e improvisado, consideram ter dois ou três dias trabalhando de casa um avanço e um legado da pandemia dos quais não querem abrir mão. Alguns estão dispostos, inclusive, a trocar de emprego para manter essa prerrogativa.
A pandemia, na verdade, derrubou vários tabus sobre as relações de trabalho dentro e fora das empresas. O chamado WFA (Working From Anywhere), ou o trabalho de qualquer lugar, ganhou espaço no desenho das organizações e começa a mudar a lógica das carreiras para o futuro. O que era uma prática mais restrita aos profissionais de tecnologia começa a valer para outras profissões. “As empresas passaram a contratar pessoas de qualquer lugar, com experiências distintas e isso acaba ajudando as suas políticas de diversidade”, diz Rafael Souto, CEO da Produtive Conexões e Carreira. “Antes a pergunta era se a pessoa tinha mobilidade para atuar em outro lugar, agora a pergunta é se a vaga tem mobilidade”, relata.
Istel, da Astra: “As pessoas têm muita dificuldade em
precificar o trabalho e colocam um valor abaixo do que
deveriam” — Foto: Silvia Zamboni/Valor
A possibilidade de atuar em companhias de outros países, seja por projeto ou até contratado, sem sair do computador de casa ampliou a oferta de trabalho para profissionais qualificados. “Antes um país podia se importar em trazer profissionais de fora porque eles competiriam com a sua mão de obra, usariam seu sistema de saúde e outros recursos locais, essa nova lógica do trabalho remoto muda isso”, diz Souto. “O risco para o Brasil é que os melhores talentos passem a trabalhar para fora se não encontrarem por aqui um gestor preparado para atuar nesse novo momento do trabalho”, diz Ana Paula Arbache, CEO da HRtech Arbache Innovation e facilitadora de cursos na Edtech Global Alumni, parceira do MIT.
Para reter e serem mais atrativas para aqueles que consideram talentos, as empresas vão ter que realinhar suas práticas de gestão dentro de um novo desenho organizacional mais ágil e menos hierárquico. “O momento pós-covid vai exigir da empresa um trabalho de articulação mais amplo e horizontal para que o grupo pense de uma maneira mais estruturada e cadenciada como caminhar. A nova dinâmica do trabalho vai demandar ações rápidas”, diz Oliver Kamakura, sócio de consultoria em gestão de pessoas da EY Brasil.
Especialistas ouvidos pelo Valor falam sobre o crescimento de carreiras fluidas, onde a questão central deixa de ser o cargo que o profissional ocupa e passa a ser o seu potencial de contribuição para determinado projeto ou atividade da companhia.
A inteligência coletiva tende a ganhar espaço em prol da agilidade e da inovação. “Para que ela aconteça, vamos precisar mudar a rota de competências, cargos e salários”, diz Ana Paula Arbache. O ganho de eficiência vai estar alinhado com o que as empresas vão priorizar em seu estoque de talentos. “Não adianta contratar só pessoas de marketing para aumentar o ‘business intelligence’, porque vai ser preciso ter também mais estatísticos”, diz a consultora. A tendência é que as áreas de atuação dos profissionais se mesclem cada vez mais daqui para a frente. “O conhecimento do comportamento humano de um psicólogo pode ajudar a construir games melhores, essa é nova lógica do trabalho”, assinala a professora Tania Casado, diretora do escritório de desenvolvimento de carreiras da USP.
O desenho de competências e salários para determinado cargo, tarefa que estava sob responsabilidade da área de recursos humanos, tendo em vista uma nova configuração do trabalho pós-pandemia, deve passar a ser uma atribuição de cada gestor. “O job design será uma função importante, porque vai ter que incluir nessas atribuições, inclusive, o que será feito pelas máquinas e o que vai ficar com os humanos”, diz João Lins, diretor-executivo da FGV in Company. “Como um técnico de futebol, o gestor vai ter que pensar como a equipe vai operar melhor, cinco humanos e cinco robôs, por exemplo.” A previsão do Fórum Econômico Mundial no “The Future of Jobs Report” é que até 2025, 48% do trabalho no mundo será feito por humanos e 52% por máquinas.
O avanço do uso da tecnologia e da inteligência artificial ganhou tração com a pandemia e acelerou o que se convencionou chamar de transformação digital em todo o mundo. Isso intensificou a preocupação das companhias no país em buscar soluções rápidas para o gap de conhecimentos de seus profissionais. O chamado upskilling, aprimoramento das habilidades dos empregados, que já estava em curso, ganhou novo impulso, mesmo com a limitação do ensino a distância. Nas grandes empresas, foram adotadas formas criativas de treinamento, que incluíram games, atividades coletivas on-line, entre outras inovações.
Embora tenha havido esse maior empenho no treino da força de trabalho, Ana Paula Arbache, pós-doutora em educação, afirma que a situação da maior parte dos profissionais brasileiros é crítica em relação às competências esperadas para o século XXI, que incluem o pensamento complexo, cruzar variáveis e tomar rumo em um ambiente incerto. “No Brasil, somos presos em uma grade curricular onde as disciplinas não se conversam, o que prejudica a nossa formação cognitiva”, diz. “Não adianta a empresa dar um treinamento raso, leve, porque o cérebro precisa ganhar insumo para pensar. É como se ele fosse a um supermercado e as prateleiras estivessem vazias. Não adianta forçar as pessoas a serem criativas e inovadoras, sem preencher esse vazio.”
Na pandemia, uma das grandes preocupações das empresas em um primeiro momento foi justamente a perda de produtividade pela falta de habilidades digitais de seus profissionais para lidar com questões básicas de tecnologia, como reuniões pelo Teams ou Zoom. Essa percepção negativa, porém, caiu por terra em poucos meses. Um estudo da EY realizado em janeiro deste ano, intitulado “Trabalho Reimaginado – As novas formas de trabalhar”, que ouviu mais de 2 mil pessoas em sete países da América Latina, incluindo o Brasil, mostra que tanto empregadores quanto empregados viram a produtividade aumentar no último ano e que a tecnologia não foi o grande impedimento para eventuais oscilações em suas entregas.
Uma surpresa no estudo da EY é que entre as diferentes gerações, as que menos se sentiram produtivas na pandemia foram justamente as que supostamente reúnem mais habilidades digitais. Entre os mais jovens, das chamadas gerações Y e Z, 61% admitiram que sua produtividade aumentou no home-office, enquanto entre os mais experientes esse percentual sobe para 75%. “Embora muitos sejam nativos digitais, o impacto da capacidade de concentração em um modelo em que liberdade e autonomia são as normas teve um impacto maior sobre eles”. Para os mais novos, a falta de repertório para lidar com as nuances da política organizacional, principalmente no trabalho remoto, se transformou em uma fonte de estresse e ansiedade.
Mas eles não são os únicos atingidos, os altos índices de burnout e problemas relacionados à saúde mental no trabalho, refletem a fragilidade das relações a distância e muitas vezes a inabilidade dos gestores em se comunicar de forma eficaz. Uma pesquisa realizada em março, pela Fundação Dom Cabral, Grant Thornton e Lyon Business School com 1.075 profissionais brasileiros indica os principais obstáculos do home office enfrentados neste um ano de pandemia. Um quarto deles indicou “maior volume de horas trabalhadas” e 16% apontaram “dificuldade de relacionamento” e “dificuldade de comunicação”. Para 14% dos respondentes, o “equilíbrio com demandas pessoais” é também uma das questões presentes.
“Não parece que as empresas estão lidando de forma correta com essa questão oferecendo aulas de ioga e mindfulness. A origem do problema está no trabalho, o empregador precisa revisitar o modelo de gestão e de governança no modelo remoto. Jornadas que começam às 7h00 e terminam às 22h30 não são sustentáveis” diz Kamakura da EY.
O melhor manejo das equipes virtuais, com mais feedback, alinhamento de expectativas, além da criação de novos vínculos para fortalecer a cultura organizacional são ações esperadas do gestor pós-pandemia. Cabe a ele também buscar um maior equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho para ele e suas equipes. O mundo descrito pelo acrônimo VUCA (volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade) ganhou outras dimensões no último ano. Agora o acrônimo mais usado na gestão é o BANI (em inglês brittle, anxious, nonlinear, incomprehensible), que em português poderia ser traduzido como frágil, ansioso, não-linear e incompreensível.
O líder vai precisar ter humildade e assumir a sua vulnerabilidade para ajudar as pessoas a construírem soluções em conjunto. “Ele vai ser o conector”, diz Kamakura da EY. Mas a mudança de atitude não está restrita ao alto escalão. “Como funcionários somos condicionados a enxergar o chefe como aquele que sabe mais, então também vamos ter mudar essa percepção”, diz Souto, da Produtive.
Liderar em organizações mais fluidas e menos hierárquicas, onde nem todos estarão sob o regime da CLT, vai exigir um conjunto de novas habilidades para quem estiver no comando, que mesclam conhecimentos hard e soft. “Saber se comunicar a distância e distribuir tarefas com mais agilidade é uma delas”, diz João Lins, da FGV. Mas para isso será necessário ter destreza digital, entender as tendências da tecnologia para redesenhar processos e dirigir melhor as pessoas. “Essa fluência no novo idioma global que é a tecnologia não depende da idade e hoje está ao alcance de qualquer um ”, diz.
O aprendizado contínuo é a palavra-chave para o profissional em qualquer ponto da carreira e em qualquer lugar que ele ocupe nesse novo ecossistema de trabalho que está sendo arquitetado. No início da pandemia, com o home office, houve uma grande preocupação dos profissionais em usar o tempo economizado em deslocamentos até o trabalho para investir na própria formação. Para o pós-pandemia, a pesquisa da EY mostra que 83% dos empregadores acreditam que o aprendizado contínuo terá um amplo impacto na agenda de negócios e 72% dos funcionários acreditam que vão ter acesso a conteúdos relevantes e receber treinamentos.
É consenso entre os especialistas que essa disposição para aprender é algo que precisa ser preservado, dentro e fora das organizações, mesmo quando já existem sinais de cansaço por parte dos profissionais pelo confinamento. “As pessoas precisam viver em constante aprendizado para estarem aptas a ocupar novas posições que vão surgindo”, diz Tania Casado, da USP.
Profissionais mais atualizados e que já tinham essa preocupação, de fato, ganharam mais espaço na pandemia em empregos formais ou como freelancers. “Quebrou-se o paradigma de que era complicado contratar profissionais por projeto. Muitas empresas tiveram que buscar conhecimentos e técnicas novas que não encontraram em seus quadros para trabalhar no modelo ágil, em squads”, diz Cai Igel, CEO da Alstra, plataforma criada em 2019, que conecta profissionais independentes a grandes empresas no Brasil, Chile, EUA e Portugal.
Ele conta que esse mercado temporário está superaquecido desde o ano passado. A Alstra, por exemplo, registrou um aumento na demanda entre 30% e 40% ao mês na busca de profissionais para atuar por projeto. Foram 280 contratações intermediadas em 2020. A maior parte dos profissionais que conseguiram um contrato temporário é da área de tecnologia, como os cientistas de dados, mas Igel conta que pessoas de outras áreas da administração, como a de gestão de riscos, passaram a ser buscadas depois da pandemia.
Não há predominância de jovens entre os profissionais intermediados pela plataforma e a procura está nas duas pontas da carreira. “Temos muitos jovens com 22 anos e profissionais com 65 anos”, diz. Ele diz que os jovens saem da faculdade e não querem trabalhar do modo tradicional, por isso buscam experiências diferentes em novas carreiras.
O fato de a barreira geográfica ter sumido com a ampliação do trabalho remoto tem ajudado a fomentar a Gig Economy. Mas quem se aventura nesse mundo do trabalho sem vínculo CLT, ainda tem muito o que aprender sobre o gerenciamento do próprio trabalho. “As pessoas têm muita dificuldade em precificar o trabalho e colocam um valor para o que fazem abaixo do que deveriam”, diz Igel. Outra preocupação sobre o trabalho freelancer é que a corrida atrás de um trabalho, em diversas frentes, pode consumir muita energia e liberar pouco tempo para que o profissional invista na atualização de suas competências. “As empresas vão ter que ajudar criando ambientes gratuitos de aprendizado, porque vão precisar contar com essas pessoas. Isso é ter senso de comunidade”, diz Ana Paula Arbache.
Se você tiver interesse e ainda não estiver inscrito para receber diariamente as postagens de O Novo Normal basta clicar no link:
https://chat.whatsapp.com/BpgpihnE3RELB1U8pSS04s para WhatsApp ou
https://t.me/joinchat/SS-ZohzFUUv10nopMVTs-w para Telegram
Este é um grupo de WhatsApp restrito para postagens diárias de Evandro Milet.
Além dos artigos neste blog, outros artigos de Evandro Milet com outras temáticas, publicados nos fins de semana em A Gazeta, encontram-se em http://evandromilet.com.br/