Nosso uso da tecnologia superou nossa capacidade de administrá-la de forma segura
Por John Thornhill – Financial Times/Valor Econômico 11/12/2020
A tecnologia tem sido uma ferramenta indispensável da nossa reação à pandemia de covid-19 e à consequente queda vertical da economia.
Os médicos adotaram a telemedicina. As crianças em idade escolar tiveram aulas digitais. Bilhões de nós se comunicaram, fizeram compras, trabalharam e se divertiram predominantemente on-line.
Mas, se tomarmos cuidado, nossa dependência ampliada em relação à tecnologia poderá magnificar, em vez de minimizar, a próxima crise mundial. Assim como a pandemia de covid-19, esse risco se classifica na categoria dos totalmente previsíveis, mas, em grande medida, inesperados. Sabemos como essa história pode se desenrolar apesar de ainda não ter lido o “script”.
Nossas estruturas de governança continuam aferradas à era analógica. Precisamos ou reimaginar sua área de atuação. Poderíamos começar com uma OMC de dados para pactuar proteções a dados pessoais e garantir os fluxos internacionais de dados
Nosso uso onipresente da tecnologia já superou nossa capacidade de administrá-la de modo seguro. Se não melhorarmos nossos regimes de segurança, governança e regulatórios, permaneceremos alarmantemente vulneráveis à mutilação de infraestrutura essencial, por má intenção ou espontaneamente. Pode-se chamar esse quadro de colapso tecnológico.
O que aconteceu esta semana na FireEye sinaliza os riscos inerentes. A tarefa da empresa americana de cibersegurança é proteger seus clientes de hackers, mas ela própria foi hackeada. A FireEye apontou o dedo acusador para um atacante patrocinado pelo governo, “que, primordialmente, procurava informações sobre determinados clientes do governo”.
De maneira alarmante, os hackers roubaram as ferramentas usadas pela “equipe vermelha” da FireEye, que invade os sistemas dos seus clientes para chamar a atenção para suas próprias vulnerabilidades. A empresa se apressa agora para mobilizar contramedidas.
As ciberarmas já se tornaram uma parte aceita de muitos arsenais de governos nacionais em vista de seu baixo custo, eficácia e a grande margem de negação plausível [negação de conhecimento ou de responsabilidade por parte de indivíduos, empresas ou autoridades] que proporcionam. Seu uso foi analisado em um novo e arrepiante documentário da HBO, baseado em livro de David Sanger.
O filme chama a atenção para como os Estados Unidos e Israel foram os primeiros a compreender o poder das ciberarmas, o que desencadeou o lançamento do “malware” [software hostil ou intruso] Stuxnet contra o Irã para contaminar os controles de seu programa de armas nucleares em 2007. “O Stuxnet foi a primeira vez que um governo relevante usou uma ciberarma potente de uma forma agressiva”, diz no filme Amy Zegart, codiretora do Centro de Segurança e Cooperação Internacional da Universidade de Stanford.
Mas esse ataque bem-sucedido abriu a caixa de Pandora de problemas que talvez seja agora impossível fechar. Os iranianos, norte-coreanos, russos e chineses logo concluíram que a ciberguerra é um jogo desigual contra um país tão grande, tão aberto e tão digitalmente exposto quanto os EUA.
Em 2014 houve um ciberataque iraniano danoso ao império de cassinos de Sheldon Adelson, o magnata americano que defendera abertamente que se jogasse uma bomba nuclear sobre o Irã. Hackers norte-coreanos, em seguida, infligiram graves danos à Sony Pictures como revanche pelo lançamento de um filme que ridicularizava o ditador Kim Jong Un. Introduziram mais tarde o ransomware (software nocivo que geralmente exige pagamento de resgate para desbloquear os dados apreendidos), que explorou falhas do software da Microsoft para atingir mais de 155 países.
Os russos desfecharam ciberataques contra a Ucrânia, causando o colapso de redes de energia, sistemas de metrô e aeroportos. Hackearam também o Comitê Nacional Democrata durante a campanha eleitoral presidencial de 2016 nos EUA e divulgaram e-mails roubados para o WikiLeaks.
Hackers chineses escancararam o Departamento de Administração de Pessoal dos EUA e acessaram cerca de 22 milhões de arquivos. Segundo especialistas citados no filme, eles também vêm tentando invadir programas de vacinas contra covid-19 e instauraram deliberadamente uma “infodemia” de desinformação sobre a pandemia nos EUA.
Em vista de tudo isso, não espanta que as autoridades de defesa dos EUA venham advertindo há anos sobre os perigos de um “ciber Pearl Harbor” que poderia destruir infraestrutura essencial, apesar de contemplarem a possibilidade de desfechar, eles mesmos, ciberataques devastadores.
Mas não é apenas o ciberconflito entre governos que é alarmante. Devemos nos preocupar também com a instabilidade sistêmica da internet, pelo fato de sua governança ser inquietantemente frágil. Correções temporárias e engenhosas de bugs em programas funcionaram por um tempo notavelmente longo enquanto reparos de longo prazo nunca se concretizaram.
O executivo-chefe da Microsoft, Satya Nadella, argumenta que a confiança da sociedade na tecnologia tem se deteriorado devido a crescentes preocupações com cibersegurança, privacidade, grau de confiança da internet e uso ético da inteligência artificial. “Em vista da inevitabilidade de a tecnologia desempenhar um papel muito mais central, temos de consolidar mais confiança”, disse ele nesta semana.
As equipes de engenharia das empresas deveriam assumir maior responsabilidade pelo desenvolvimento de sistemas que garantam segurança e reforcem a confiança, disse Nadella. Mas precisamos também de regulamentações e instituições novas.
Nossas estruturas de governança continuam aferradas à era analógica. Precisamos ou reimaginar sua área de atuação ou inventar novas. Poderíamos começar com uma Organização Mundial de Dados para pactuar proteções a dados pessoais e garantir os fluxos internacionais de dados. Um equivalente digital à Food and Drug Administration [FDA, o órgão regulador de medicamentos e alimentos dos EUA] poderia ser encarregado de pré-aprovar algoritmos usados em áreas sensíveis, como a de saúde e o sistema judiciário. E uma Convenção de Genebra Digital poderia fixar os limites da guerra cibernética.
William Gibson, o escritor de ficção científica que cunhou o termo ciberespaço, me disse no começo deste ano que podemos ser a última geração a fazer distinção entre nossos mundos off-line e on-line. Sem sombra de dúvida, ele tem razão. Chegou a hora de governarmos nossos mundos físico e virtual como um só. (Tradução de Rachel Warszawski).
John Thornhill é editor de Inovação do Financial Times
https://valor.globo.com/opiniao/coluna/ameacas-de-um-crash-tecnologico.ghtml
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