De livros infantis personalizados a guias de viagens, ferramentas começam a fazer parte da vida de pais, filhos e profissionais — e ajudam a moldar uma nova cultura digital
Por Henrique Sampaio – Estadão – 07/06/2025
Quando a designer Camila Neves, de 33 anos, de Cotia (SP), decidiu que era hora de tirar a chupeta do filho caçula, Zakk, ela não recorreu a métodos tradicionais nem pediu conselhos em fóruns de mães. Em vez disso, criou um livro ilustrado com inteligência artificial (IA), usando uma imagem do filho. O projeto, simples na execução, teve um resultado poderoso: o menino se reconheceu no personagem e, com o apoio da história, aceitou abrir mão da chupeta. “Ele pediu pra eu ler de novo e de novo, várias vezes, até dormir. E isso me deixou com a sensação de missão cumprida, sem sofrimento”, relatou Camila em uma publicação no LinkedIn.
Enquanto isso, a mais de 2 mil quilômetros dali, em uma barraca de camping improvisada no litoral da Bahia, o engenheiro Fábio Bergamini, de 30 anos, ajustava uma lanterna pendurada no teto enquanto falava ao Estadão, por chamada de vídeo, sobre como também tem recorrido à IA — não para criar histórias infantis, mas para planejar rotas, buscar paradas ideais em cidades desconhecidas e lidar com problemas no carro durante sua road trip.
Bergamini, que saiu de São Paulo de carro rumo a Itacaré, na Bahia, usou a IA para planejar roteiros improvisados e acabou fazendo boas descobertas, como um festival gastronômico. “Perguntei para a (inteligência artificial) Perplexity: estou em Montes Claros de dia tal até dia tal, o que tem de interessante para fazer aqui? Ela trouxe um evento que eu não fazia ideia que estava acontecendo.” Mais do que apenas turismo, Bergamini, que é nômade digital, vem usando a IA como suporte prático para emergências. “Se estou com um problema no carro ou algo assim, pergunto para a Perplexity e tenho a resposta.”
Os casos de Camila e Bergamini são apenas dois entre muitos exemplos que mostram como a IA já se infiltrou no cotidiano dos brasileiros. De mães em licença-maternidade a adolescentes aprendendo programação, de engenheiros otimizando tarefas domésticas a juízes que aceleram sentenças, a IA já participa de momentos íntimos e cotidianos — e modifica comportamentos, rotinas e relações.
Segundo a pesquisa Nossa Vida com IA: Da inovação à aplicação, feita por Google e Ipsos, 54% dos brasileiros relataram ter usado ferramentas de inteligência artificial generativa em 2024, superando a média global de 48%. No ambiente profissional, o número chega a 78%. Os dados indicam um crescimento significativo no uso da IA no Brasil em comparação com anos anteriores, refletindo uma tendência de adoção crescente tanto no cotidiano quanto no ambiente de trabalho.
Mesmo pessoas e empresas que não fazem uso de modelos como o ChatGPT já convivem com sistemas de IA no dia a dia. É o caso da Embraer, que usa IA para prever falhas em aviões e antecipar manutenções com base em dados captados em tempo real durante os voos. Ou das câmeras de monitoramento em cidades como Rio e São Paulo, que integram algoritmos de IA para reconhecimento facial, placas de automóveis e identificação de comportamentos suspeitos nas ruas.
Nas rodovias, a EcoRodovias adotou câmeras com IA para flagrar motoristas sem cinto ou usando celular. Até a previsão do tempo começa a incorporar a tecnologia: o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) está investindo na modernização de seus sistemas, com a adoção de algoritmos inteligentes e sensores mais precisos para gerar estimativas voltadas, sobretudo, à agricultura e à prevenção de desastres climáticos.
Mil e uma demandas
No setor privado, a tecnologia também opera nos bastidores. Supermercados como Carrefour e Grupo Pão de Açúcar usam IA para prever demanda, ajustar estoques e definir promoções com base no comportamento dos consumidores, sem que os clientes percebam.
Aplicativos de delivery, como o iFood, usam mais de cem modelos de IA para personalizar ofertas, organizar a logística de entregas e prever picos de demanda conforme clima, horário e localização. No campo, empresas de agronegócio utilizam IA para analisar solo, prever pragas e monitorar plantações via satélite ou drones — tecnologias que já são adotadas em larga escala por gigantes como Raízen e Bayer. Esses sistemas não exigem nenhuma interação direta do consumidor e estão integrados à engrenagem dos serviços, tornando a IA uma presença ubíqua, embora invisível, no cotidiano.
Mas, claro, o boom da IA generativa aumentou a curiosidade e as experimentações de uso consciente da tecnologia — ou seja, os brasileiros agora procuram ativamente o uso de algoritmos. Camila conta que começou a usar IA generativa no fim de 2023 para criar ilustrações e músicas personalizadas para os filhos como forma de se conectar com eles. “Hoje eles não interagem diretamente com IA, eu sou a intermediária”, conta a designer. As ferramentas preferidas dela são ChatGPT, Lovable (plataforma de geração de sites e aplicativos) e o Midjourney, para a geração de imagens.
O filho mais velho dela, de 15 anos, que estuda desenvolvimento de sistemas, também usa IA, principalmente nos estudos. Camila conta que ele aprendeu a usar o modelo da OpenAI como apoio para tirar dúvidas, mas com senso crítico. “Ele sabe que pode usar os recursos do ChatGPT, mas, ao mesmo tempo, precisa revisar, procurar fonte, ver se é verdadeiro.”
No caso do turista Fábio Bergamini, a IA se tornou parte fundamental da rotina, tanto dentro quanto fora do ambiente de trabalho. Após reuniões com clientes, ele costuma usar o ChatGPT Enterprise para planejar a arquitetura das soluções, aproveitando a capacidade da ferramenta de “raciocinar” em etapas. Para ele, a melhor forma de usar essas ferramentas é por meio da interação contínua. “O melhor resultado que você pode ter é justamente ver o que ela dá como resposta e ir refinando.”
Fábio usa o GitHub Copilot, integrado em seu ambiente de desenvolvimento. Com a ferramenta, a programação bruta dá lugar a uma tarefa mais estratégica: ele define a lógica e orienta o que precisa ser feito, terceirizando à máquina o trabalho “braçal”. “Em vez de digitar uma função no código que vai ter sei lá quantas linhas, eu explico o que quero para obter uma resposta com maior qualidade.”
IA moldando o comportamento
Na mais recente onda de demissões na Microsoft, 6 mil funcionários perderam seus empregos, inclusive no Brasil. Em 2024, o setor global de tecnologia dispensou aproximadamente 280 mil funcionários, ao mesmo tempo que teve um investimento recorde em IA. De acordo com o AI Index Report 2025, da Universidade Stanford, o investimento corporativo privado na tecnologia totalizou US$ 252,3 bilhões no ano passado, representando um aumento de 44,5% em relação a 2023.Camila, que trabalha com design — uma das áreas mais afetadas pela expansão da IA generativa — foi dispensada recentemente de um cargo de liderança. Ela, no entanto, não encara a IA como uma ameaça direta, mas como uma oportunidade.
A designer lembra que a história já assistiu a outras transformações tecnológicas que mudaram profissões criativas, como a substituição de tipógrafos pela impressão automatizada. “Então, a cada momento histórico que a gente tem de evolução tecnológica, a gente vive de novo esse cenário.” Para ela, a questão não está apenas na ferramenta, mas no quanto o profissional consegue ir além da superfície. “Profissionais que se apegam apenas a uma única forma de fazer as coisas tendem a ficar para trás.”
Bergamini adota um tom de alerta mais intenso. “Uma coisa que me preocupa bastante é o quanto a capacidade intelectual cognitiva da sociedade vai diminuir conforme nós usamos mais IA e deixamos de ter um raciocínio crítico.” Para ele, a facilidade trazida por essas ferramentas pode gerar uma acomodação perigosa.
Ele compara o uso da IA à calculadora: uma ferramenta que, apesar de muito útil, raramente levanta questionamentos sobre seus efeitos na cognição humana. “Da mesma forma que a gente usa uma calculadora para fazer uma conta mais complexa e não se pergunta se isso está prejudicando a nossa capacidade de fazer conta de cabeça — que certamente está —, a IA é uma ferramenta que a gente usa para facilitar o dia a dia.
O ponto de maior preocupação para Bergamini está na formação de novos profissionais. “Quando eu leio um código gerado por IA e ele não é bom, eu percebo. Mas o que acontece quando um estagiário ou um analista júnior faz isso? Essas pessoas vão ter a capacidade de olhar o código e criticar?” Por isso, insiste com sua equipe sobre a importância do uso consciente. “Aprender a usar a IA é equivalente ao que foi aprender o pacote Office na nossa geração”, compara.
Um novo tipo de alfabetização tecnológica
Se dominar a IA será o novo “pacote Office”, o desafio está em preparar as pessoas para esse novo contexto. Diogo Cortiz, pesquisador de IA e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), chama esse momento de “digitalização 2.0”.
Ele explica que, assim como nos anos 1990 surgiram escolas de informática que ensinavam a usar editores de texto, planilhas e e-mail, será preciso desenvolver estratégias semelhantes para o letramento em IA. “A gente sabe que a IA vai trazer perturbações para o mercado de trabalho, mas elas serão ainda mais duras para quem não usa. E a gente vai precisar fazer esse processo de qualificação.”
O uso da tecnologia, contudo, ainda avança no Brasil sem um plano claro de adaptação econômica, com o Projeto de Lei 2.338, de 2023, conhecido como Marco da IA, que propõe sua regulamentação, ainda em debate na Câmara dos Deputados. “Todos os países vão precisar fazer isso. Mas não há nenhuma estratégia um pouco mais nítida sobre esse processo de transformação e adaptação econômica”, diz Cortiz.
“Aprender a usar a IA é equivalente ao que foi aprender o pacote Office na nossa geração”
Fábio Bergamini
engenheiro que usa IA em sua road trip
A expectativa, segundo ele, é de que políticas públicas só surjam de forma reativa, conforme os efeitos da tecnologia se tornem visíveis. “Conforme a tecnologia for sendo implementada e as empresas forem vendo alguns ganhos de produtividade em um segmento e não em outro, empregos começarem a ser deslocados, aí sim, acho que os governos vão precisar antecipar isso e criar cenários e políticas públicas de como responder.”
Esse processo de formulação, no entanto, deve levar em conta mais do que os impactos econômicos. É preciso observar as mudanças sutis — e muitas vezes invisíveis — no comportamento social. “A gente pode assumir que a IA já vem influenciando nosso comportamento há muito tempo de forma mais oculta”, afirma Cortiz. Mas com a chegada do ChatGPT ao grande público, a transformação se tornou visível.
A difusão em larga escala marca uma mudança de paradigma. O ChatGPT, por exemplo, já está entre os sites mais acessados do Brasil. Para Cortiz, essa mudança afeta diretamente o modo como as pessoas buscam e processam informações. “Em vez de entrar em um buscador, elas já perguntam para o chatbot, que responde com uma resposta mastigada, imediata.” Embora isso represente uma conveniência, ele alerta que há riscos envolvidos: “Será que as pessoas estão confiando demais em uma resposta que pode estar errada?”
Ele também aponta para a perda de diversidade na navegação cotidiana. “Será que ela não está perdendo uma pluralidade maior de comportamento, de informação, de conteúdo, de pontos de vista?”, questiona.
Esse novo cenário é marcado por uma imprevisibilidade. “O que mais importa nesse processo de mudança tecnológica não é a tecnologia em si, é principalmente o uso que as pessoas vão fazer”, diz Cortiz. “Tem gente usando para fazer currículo, outras pessoas como um terapeuta. Tem quem já não consiga mandar um e-mail sem passar pelo ChatGPT, porque perdeu esse senso crítico”, aponta.
Diante deste cenário, o Brasil vive uma contradição: é um país com alta conectividade, mas baixa alfabetização digital. Quais são as consequências disso? Para Dora Kaufman, que estuda os impactos da IA no Brasil, a falta de entendimento básico sobre o funcionamento dessas tecnologias abre caminho para seu mau uso — e para riscos à democracia.
“O que mais importa nesse processo de mudança tecnológica não é a tecnologia em si, é principalmente o uso que as pessoas vão fazer dela”
Diogo Cortiz
pesquisador de IA e professor da PUC-SP
“Eu tenho insistido que a regulamentação é fundamental, mas a grande mudança vai ser quando alfabetizar as pessoas em relação ao que é IA”, afirma. Ela defende uma campanha nacional ampla, liderada pelo setor público e com apoio das empresas de tecnologia, para explicar à população o que é IA, como funciona e o que ela é (ou não) capaz de fazer.
Os maiores riscos atuais da IA
“Hoje, os maiores riscos em relação à IA não estão mais na tecnologia em si, mas no desconhecimento de como usá-la — ou no uso intencional para fins nocivos”, alerta Dora. Isso se torna especialmente perigoso em contextos como as eleições, onde a IA pode ser usada para hiperpersuasão ou manipulação.
Ela também defende medidas de letramento digital como forma de mitigar os efeitos da desinformação em larga escala. “Se as pessoas souberem que é possível gerar imagens e falas falsas com altíssimo grau de realismo, elas vão refletir mais antes de compartilhar”, afirma. Em sua visão, o letramento não substitui a regulação, mas precisa caminhar junto com ela.
Durante a ascensão das redes sociais isso não foi feito. A população foi lançada nesse novo ambiente repleto de possibilidades sem a devida orientação — o que resultou em muitos casos de mau uso, intensificados por algoritmos desenhados para engajar a qualquer custo. O resultado foi um ecossistema em que a manipulação se tornou rotina. Com a IA, surge o risco de repetir os erros do passado, como aqueles que culminaram na proliferação de fake news e discursos de ódio ao longo da década de 2010.
Apesar dos riscos, há quem veja sinais de maturidade nesse novo ciclo. Para o pesquisador Diogo Cortiz, a sociedade já carrega uma visão mais crítica sobre a tecnologia. “Eu acho que agora a gente tem um senso crítico muito maior. Não todo mundo, mas tomadores de decisão, pesquisadores, formuladores de políticas públicas”, afirma.
Esse olhar mais atento, diz Cortiz, tem raízes até mesmo na cultura pop. “A ficção científica ajudou a preparar o imaginário. Livros e filmes mostraram a IA com uma pegada mais distópica.” Isso, na avaliação dele, ajuda a antecipar problemas e reforça a importância de um debate contínuo e crítico. “A tecnologia vai trazer benefícios, mas também vai gerar impactos. Se a gente antecipar esses problemas, vamos estar mais preparados para lidar com eles.”Para Camila, a IA já representa uma perspectiva de recomeço e uma nova forma de empreender: quer transformar o livro criado para o filho em um modelo de negócios. Desempregada, ela tem apostado na criação de livros infantis para colorir personalizados com IA. O projeto, chamado Eita Lelê, surgiu enquanto refletia após a demissão. “Foi um momento em que eu ainda não tinha certeza sobre minha recolocação no mercado”. Depois de um período de longas jornadas de trabalho, ela diz que reencontrar tempo com os filhos tem feito a diferença. E a IA acabou fazendo parte do processo.
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