Em teste da OCDE, a proficiência em ler e escrever teve melhoras significativas em apenas dois países (Finlândia e Dinamarca), permaneceu estável em 14 e teve pioras significativas em 11
Por Sarah O’Connor – Valor/Financial Times – 27/12/2024
“A inteligência humana”, escreveu certa vez o crítico cultural Neil Postman, “está entre as coisas mais frágeis na natureza”. Não é preciso muito para distraí-la, suprimi-la ou mesmo aniquilá-la”.
O ano era 1988, um ex-ator de Hollywood ocupava a Casa Branca e Postman estava preocupado com a ascendência das imagens sobre as palavras nos meios de comunicação, na cultura e na política dos Estados Unidos. A televisão “condiciona nossas mentes a captar o mundo por meio de imagens fragmentadas e força outros meios de comunicação a se orientarem nessa direção”, argumentou em um ensaio de seu livro “Conscientious Objections”. “Uma cultura não precisa forçar a fuga de acadêmicos para deixá-los impotentes. Uma cultura não precisa queimar livros para assegurar que não sejam lidos […] Há outros modos de alcançar a estupidez”.
O que, em 1988, pode ter parecido rabugento, em 2024, soa mais a uma profecia. Em dezembro, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou os resultados de um abrangente estudo: avaliações presenciais sobre as capacidades de ler e escrever, de entender matemática e de resolver problemas de 160 mil adultos, na faixa de 16 a 65 anos, em 31 países e economias diferentes. Em comparação à rodada anterior de avaliações, feita dez anos antes, as tendências observadas na capacidade de ler e escrever foram assombrosas. A proficiência teve melhoras significativas em apenas dois países (Finlândia e Dinamarca), permaneceu estável em 14 e teve pioras significativas em 11. Os maiores declínios ocorreram na Coreia do Sul, Lituânia, Nova Zelândia e Polônia.
Entre adultos com ensino superior (como graduados universitários), a proficiência em leitura diminuiu em 13 países e aumentou apenas na Finlândia. Além disso, quase todos os países e economias tiveram declínios na capacidade de ler e escrever entre adultos com escolaridade abaixo do ensino médio. Cingapura e EUA apresentaram as maiores desigualdades tanto nas capacidades de ler e escrever quanto na de matemática.
“Trinta por cento dos americanos leem em um nível que você esperaria de uma criança de dez anos”, disse Andreas Schleicher, diretor de educação e habilidades pessoais da OCDE, referindo-se à proporção de pessoas nos EUA que tiveram uma nota de nível 1 ou inferior em leitura. “É realmente difícil imaginar – que uma em cada três pessoas que você encontra na rua tem dificuldade até para ler coisas simples”.
Entre adultos com ensino superior, a proficiência em leitura diminuiu em 13 países e aumentou só na Finlândia. Além disso, quase todos os países e economias tiveram declínios na capacidade de ler e escrever entre adultos com escolaridade abaixo do ensino médio
Em alguns países, a deterioração é explicada em parte pelo envelhecimento da população e pelo aumento da imigração, mas Schleicher diz que apenas esses fatores não explicam inteiramente a tendência. A hipótese dele não seria nenhuma surpresa para Postman: a tecnologia mudou a maneira como muitos de nós consumimos informações, com um afastamento em relação aos textos mais longos e complexos, como livros e artigos de jornais, em direção a publicações e vídeos, ambos curtos, em plataformas de relacionamento social on-line.
Ao mesmo tempo, essas plataformas aumentam as chances de que você “leia materiais que confirmam suas opiniões, em vez de se envolver com pontos de vista diversos, e isso é o que você precisa para atingir [os níveis mais altos] na avaliação [de capacidade de ler e escrever da OCDE], na qual você precisa [saber] distinguir fato de opinião, navegar pela ambiguidade, lidar com a complexidade”, explica Schleicher.
As implicações para a política e a qualidade do debate público já são evidentes. Elas também já haviam sido previstas. Em 2007, o escritor Caleb Crain escreveu um artigo chamado “Twilight of the Books” [O crepúsculo dos livros] na revista The New Yorker, sobre como seria uma cultura pós-letrada. Em culturas orais, escreveu Crain, clichês e estereótipos são valorizados, conflitos e insultos são apreciados por serem memoráveis, e os oradores tendem a não corrigir a si mesmos porque “é apenas em uma cultura letrada que se precisa prestar contas pelas inconsistências do passado”. Isso soa familiar?
Essas tendências não são inevitáveis nem irreversíveis. A Finlândia demonstra o potencial de um ensino de alta qualidade e normas sociais fortes para sustentar uma população altamente alfabetizada, mesmo em um mundo onde o TikTok existe. A Inglaterra mostra a diferença que melhorias na educação podem fazer: lá, a proficiência na leitura e na escrita de jovens de 16 a 24 anos foi muito melhor do que há dez anos.
A questão de saber se a inteligência artificial (IA) pode aliviar ou agravar o problema é mais complexa. Sistemas como o ChatGPT podem desempenhar bem muitas tarefas de leitura e de escrita: são capazes de analisar grandes volumes de informações e reduzi-los a resumos.
Vários estudos sinalizam que, quando usadas no ambiente de trabalho, essas ferramentas podem melhorar muito o desempenho de trabalhadores menos qualificados. Em um estudo, pesquisadores monitoraram o impacto de uma ferramenta de IA em funcionários responsáveis por prestar atendimento ao cliente e suporte técnico por meio de janelas de bate-papo por escrito. A ferramenta, treinada a partir dos padrões das conversas dos profissionais de melhor desempenho, fornecia sugestões de texto em tempo real aos funcionários sobre como responder aos clientes. O estudo constatou que trabalhadores menos qualificados se tornaram mais produtivos e seus padrões de comunicação ficaram mais próximos aos dos mais qualificados.
David Autor, professor de economia no MIT, argumenta que ferramentas de IA poderiam capacitar mais trabalhadores a desempenhar funções de maior qualificação e ajudar a restaurar “o cerne do mercado de trabalho dos EUA, de classe média e capacitação média”.
No entanto, observa Autor, para que essas ferramentas sejam bem usadas e “incrementem” as habilidades das pessoas, é necessário ter uma fundação sólida desde o início. Sem isso, Schleicher teme que pessoas com baixa capacidade de leitura e de escrita se tornem “consumidores ingênuos de conteúdo pré-fabricado”.
Em outras palavras, se você não tiver suas próprias habilidades sólidas, há poucos passos de distância entre ser apoiado pela máquina e acabar dependente dela, ou sujeitado a ela. (Tradução de Sabino Ahumada)
Sarah O’Connor é repórter e colunista do Financial Times.
Rumo à sociedade pós-letrada? | Opinião | Valor Econômico
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