Complacência com IA ameaça defesa


Nenhum desses drones ofensivos é fabricado nos EUA ou na Europa ocidental, uma grande fraqueza na base industrial e na postura militar do Ocidente

Por Charles Ferguson – Valor – 08/08/2024

Com o Ocidente forçado a confrontar a Rússia e a China, os conflitos militares revelaram grandes fraquezas sistêmicas nas forças armadas dos Estados Unidos e da Europa e em suas bases industriais de defesa.

Esses problemas decorrem de tendências tecnológicas fundamentais. Na Ucrânia, sistemas tripulados caros como tanques, aeronaves de combate e navios de guerra têm se mostrado extremamente vulneráveis a drones não tripulados baratos, mísseis de cruzeiro e mísseis guiados. A Rússia já perdeu mais de 8 mil veículos blindados, um terço de sua frota no Mar Negro e muitos aviões de combate, levando-a a deslocar seus sistemas tripulados caros para mais longe das zonas de combate.

Drones baratos produzidos em massa pela China, Rússia, Irã, Turquia e agora pela Ucrânia, se tornaram armas ofensivas fundamentais e ferramentas valiosas para vigilância, direcionamento e orientação. Frequentemente baseados em produtos comerciais amplamente disponíveis, os drones estão sendo produzidos aos milhões a um custo de apenas US$ 1 mil-50 mil cada. No entanto, nenhum desses drones é fabricado nos EUA ou na Europa ocidental – uma grande fraqueza na base industrial e na postura militar do Ocidente.

Embora seja fácil destruir os drones russos, chineses e iranianos com os sistemas ocidentais existentes, os custos são proibitivos – de US$ 100 mil a US$ 3 milhões por alvo. Essa relação insustentável é o resultado de décadas de complacência e ineficiência burocrática. Nenhum contratante ocidental tradicional produz um sistema anti-drone competitivo em termos de custo – embora várias startups dos EUA e Ucrânia os estejam desenvolvendo agora.

Pior ainda, essa situação é só um prelúdio para um futuro de armas autônomas não tripu tripuladas. A maioria dos drones atuais é controlada remotamente por um humano ou guiada de forma simplista por GPS ou mapas digitais. Mas novas tecnologias de Inteligência Artificial (IA) – baseadas em grande parte em produtos comerciais e pesquisas acadêmicas disponíveis publicamente – em breve transformarão a guerra, e possivelmente o terrorismo também.

Os drones habilitados por IA já podem operar em enxames altamente coordenados, permitindo, por exemplo, que um atacante cerque um alvo, impedindo sua fuga. O direcionamento em si está se tornando extremamente preciso – chegando ao nível de identificar o rosto de um indivíduo, uma peça de vestuário religiosa ou uma placa de veículo específica – e os enxames de drones são cada vez mais capazes de navegar por cidades, florestas e edifícios.

Produtos orientados por IA, tanto militares como comerciais, dependem de uma pilha tecnológica complexa e em camadas, na base da qual está o equipamento fundamental, os equipamentos para semicondutores (as máquinas de alta precisão que fabricam os chips), seguido pelos semicondutores (como os processadores de IA da Nvidia), centros de dados, modelos de IA e seus dados de treinamento, serviços de IA em nuvem, design de produtos de hardware, fabricação e engenharia de aplicação e sistemas.

EUA, Europa Ocidental, Taiwan e Coreia do Sul coletivamente ainda estão à frente da China (e da Rússia) na maioria dessas áreas, mas sua liderança está diminuindo e a China já domina os mercados mundiais de hardware de uso duplo produzido em massa, como drones e robôs.

A resposta ocidental a esse desafio tem sido lamentavelmente inadequada até agora. Os controles à exportação de tecnologias de habilitação de IA estão limitados aos equipamentos essenciais para a fabricação de semicondutores e processadores, e mesmo esses controles vem enfrentando resistência, ou sendo afrouxados e evitados. Embora a exportação de processadores de IA de ponta para a China tenha sido proibida, o acesso a serviços de nuvem dos EUA com o uso desses mesmos processadores continua aberto, e a Nvidia agora fornece à China processadores de IA quase tão poderosos, mas especialmente adaptados para se enquadrar nos controles às exportações dos EUA. Não há qualquer controle de exportação ou licenciamento em pesquisas, modelos ou dados de treinamento de IA.

Empresas individuais estão tentando vender o máximo possível para a China. Ao tentar obter a liderança diante de seus competidores imediatos, cada empresa enfraquece a posição de longo prazo de todas as outras, e, no final, a sua própria

Embora algumas empresas americanas, como Google, tenham mantido seus modelos de IA restritos e limitado o acesso chinês a sua tecnologia, outras fizeram o oposto. A OpenAI proíbe o acesso direto chinês a suas interfaces de programação de aplicativos (APIs), mas essas mesmas APIs permanecem disponíveis através da Microsoft. Enquanto isso, a Meta adotou uma estratégia de código aberto total para seus esforços em IA, e a firma de venture capital Adreessen Horowitz está fazendo lobby para evitar os controles de exportação (ou qualquer restriçãoo regulatória) sobre os modelos de IA de fonte aberta.

Os setores de tecnologia dos EUA e Europa estão assim se comportando como um pelotão de fuzilamento circular, com empresas individuais tentando vender o máximo possível para a China. Ao tentar obter a liderança sobre seus competidores imediatos, cada empresa enfraquece a posição de longo prazo de todas as outras, e, no final, a sua própria. Se isso continuar, o resultado previsível é que os EUA e a Europa Ocidental ficarão atrás da China – e até mesmo atrás da Rússia, Irã ou grupos terroristas descentralizados -, tanto em termos de guerra movida pela IA, como em aplicações comerciais de IA.

Muitos tecnólogos e gestores do Vale do Silício e organizações governamentais estão cientes desse risco, e muito perturbados por ele. Mas apesar de algumas iniciativas significativas (como a Unidade de Inovação em Defesa dentro do Pentágono), houve relativamente pouca mudança no comportamento do setor de defesa ou na política governamental.

Esta situação é particularmente absurda, dada a oportunidade óbvia para uma grande e extremamente vantajosa barganha: a aquiescência da indústria aos controles de exportação impostos pelo governo em troca de negociação coletiva apoiada pelo governo com a China em licenciamento de tecnologia, acesso ao mercado e outros benefícios comerciais. Apesar de algumas áreas de tensão genuína, há um grau surpreendentemente alto de alinhamento entre os interesses de segurança nacional e os interesses coletivos de longo prazo do setor de tecnologia do Ocidente.

A estratégia lógica é que o governo dos EUA e a União Europeia sirvam como agentes de barganha em nome da indústria ocidental ao lidar com a China. Infelizmente, não é para onde as coisas estão rumando no momento. Embora as autoridades e tecnólogos estejam acordando para a ameaça, a infraestrutura tecnológica essencial está agora avançando dramaticamente mais rápido do que os debates políticos e os processos legislativos – sem mencionar os ciclos de produtos do Pentágono e dos contratantes de defesa tradicional. O desenvolvimento da IA está progredindo tão rapidamente que até mesmo o sistema de startups dos EUA está tendo dificuldades para acompanhar. Isso significa que não há tempo a perder. (Tradução de Mário Zamarian)

Charles Ferguson, investidor em tecnologia e analista de políticas, é diretor do documentário vencedor do Oscar “Inside Job” (“Trabalho Interno”, no Brasil). Project Syndicate, 2024.

http://www.project-syndicate.org

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/complacencia-com-ia-ameaca-defesa.ghtml

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