Escutar com atenção para comunicar melhor


Escuta atenta entrou na lista das habilidades mais demandadas de um relatório sobre o futuro do emprego do Fórum Econômico Mundial que se tornou referência sobre as tendências do mercado global

Por Isabel Clemente – Valor – 21/03/2024 

Carioca, é formada em Jornalismo pela PUC-Rio e mestre em Escrita Criativa pela Royal Holloway, University of London

Não existe hipótese de Mia Couto participar de evento no Brasil e não estar cercado por uma pequena multidão. E lá estava ele com prêmios-fama-reconhecimento-e-simpatia participando de um debate tímido, com uma entrevistadora e vinte pessoas – se tantas – na pequena sala. Quando acabou, aguardei um grupinho ou outro se dissipar e me aproximei.

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Não lembro como o abordei. Devo ter dito o quanto eu admirava seus livros e sua escrita poética tentando não soar exagerada e não usando a palavra poética. Lembro muito bem, no entanto, como Mia Couto inverteu o foco da conversa. De repente, era o escritor que entrevistava a desconhecida. Com olhos atentos e pausas mais longas do que sua fala, queria saber o que levara a brasileira até o Norte de Portugal, onde estávamos. Ele se interessou pelo meu percurso, minha história, meus livros. Pensei em dizer que eu não tinha importância, mas não consegui diante daquele perturbador poder de observação.

Escuta atenta entrou na lista das habilidades mais demandadas da Pesquisa sobre o Futuro dos Empregos 2023, do Fórum Econômico Mundial, um relatório que se tornou referência sobre as tendências do mercado global. Mais de 800 empresas foram ouvidas. Juntas, elas empregam mais de 11,3 milhões de pessoas em todas as regiões do planeta. Lá estava a escuta, ao lado de empatia, no grupo das habilidades que importam.

Nem sempre é assim. Da lista das competências citadas em vagas do LinkedIn, sondagens de mercado e anúncios de emprego, costuma constar comunicação, uma ideia guarda-chuva que embute conhecimentos distintos, como oratória, escrita e escuta. Infelizmente, o combo não está garantido numa pessoa. Nem sempre quem discursa lindamente consegue se traduzir por escrito, e vice-versa. Gente sedutora no palco às vezes não percebe que o holofote precisa girar numa reunião e esquece de dar a vez. Bons ouvintes, então, são produtos raros. Atropelos, falta de autopercepção e ansiedade para concluir raciocínios são alguns dos ingredientes da indelicadeza social e da falta de traquejo profissional.

Escutar não é simples. Pesquisadores da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, ficaram anos acompanhando milhares de estudantes e profissionais para verificar a capacidade de entendimento e retenção do que haviam escutado em exposições orais de curta duração. O grupo testado lembrava só de metade do que ouvira, por mais atenção que acreditasse ter dado a quem falava. Outras pesquisas, da Florida State University e de Michigan, concluíram que, dois meses depois de uma palestra, as pessoas lembravam, no máximo, de 25% do conteúdo. As pesquisas – que você pode conhecer um pouco mais aqui – confirmaram a hipótese inicial: estudantes precisam ser ensinados a escutar porque o sistema educacional focou demais na leitura e pouco na capacidade de ouvir.

Quanto a nós, que não estamos nas fileiras acadêmicas, resta aprender e praticar também. Não faltam cursos, livros e ótimas palestras sobre essa arte. Escutar, como bem diz William Ury, neste TED, “é a parte que falta na comunicação, absolutamente necessária mas geralmente negligenciada.” Ury, prestigiado especialista em negociações, cofundador do programa de Harvard no mesmo tema, lista três motivos para desenvolvermos nossa escuta.

  1. Para aumentar a chance de também sermos ouvidos.
  2. Para demonstrar confiança e confiabilidade.
  3. Para entender o outro lado.

Escutar é a pausa necessária para lermos as outras pessoas. Não só. “Escutar é a concessão mais barata que você pode fazer durante uma negociação”, diz William Ury.

Acontece que comunicação também é uma negociação. Quem fala ou escreve vende alguma coisa, nem que sejam ideias. Negocia algo, nem que seja a atenção da audiência. Propõe novas formas de entender certos assuntos. Quem escreve oferece um texto em troca de atenção. É ou não é uma negociação? Das mais complicadas, por sinal.

Estamos brigando por esse tempo escasso que rouba nossos leitores depois de um minuto de leitura ou menos, alerta o Google Analytics. Estamos negociando espaços em mentes fechadas. Para comunicar bem, escrevendo ou falando, passamos necessariamente pela etapa de ter escutado com atenção. Estão aí os escritores, não qualquer um, mas gente admirável, revelando interesse pelo que a outra pessoa tem a dizer. Como fazem isso?

Em seu livro “Escrever”, uma síntese – pequena até – de mais de 50 anos dedicados ao ofício, a escritora francesa Marguerite Duras nos deixa uma pista para aprendermos a escutar mais. “Escrever é também não falar. É se calar. É berrar sem fazer ruído. Um escritor com frequência é sossegado, e alguém que escuta muito. Não fala demais.”

O livro da Duras e o episódio com Mia Couto me remeteram a outro encontro inesperado e marcante quase três décadas antes. Eu passeava pelo Centro Cultural do Banco do Brasil no Centro do Rio, vazio num dia de semana, quando avistei uma figura familiar. Dei de cara com Gabriel García Márquez. Atrás dele, um pequeno grupo de repórteres guardava certa distância. Nada de multidão.

Mais uma vez, esqueci o que eu disse diante da lenda, do criador de Macondo, do pai de Cándida Eréndira y su abuela desalmada, do autor da mais linda história de amor que eu tinha lido três vezes: nos tempos da vaca louca na Inglaterra, da cólera no Nordeste e da dengue no Brasil inteiro.

De novo, o escritor quis saber de mim. “Periodista de economia, mas quero ser escritora”, respondi. “Escritora? Y qué escribes”? “Cuentos”, disse, quase arrependida da minha ousadia. Maneira de dizer, pensei em consertar. Na falta de assunto, confessei que tinha um conto bem ali comigo. Num gesto silencioso que durou muito mais do que nossa breve conversa, e que eu jamais esqueceria, ele pegou os papéis da minha mão, leu algo, sorriu e pediu uma caneta.

Desenhou e assinou: “Isabel, Trés flores para el cuento que escribiste hoy. Gabo.”

https://valor.globo.com/opiniao/isabel-clemente/coluna/escutar-com-atencao-para-comunicar-melhor.ghtml

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