“Enquanto o planejamento tradicional faz projeções para curto e médio prazos, as análises de estudo de futuro fazem projeções e análises que se estendem por décadas”, explica especialista
Por Helena Carnieri , para o Valor – 01/05/2024
Em seu best-seller “Sapiens”, Yuval Noah Harari dedica vários capítulos à Revolução Agrícola, ocorrida entre 9000 AEC e 2000 AEC, conforme a região do planeta. Uma das transformações decorrentes desse processo foi o surgimento do conceito de planejamento, pois “os agricultores sempre precisam ter o futuro em mente e trabalhar em função dele”, escreve. Surgia assim uma preocupação que nunca mais abandonaria o ser humano.
Hoje, há quem faça disso uma profissão. Os futuristas atuam prioritariamente em áreas que envolvem inovação e planejamento de longo prazo. Podem trabalhar em empresas, governos e organizações sem fins lucrativos. Podem também ser pesquisadores e professores, mas sempre tendo em comum a busca de recursos que permitam desenhar cenários vindouros com um mínimo de confiabilidade.
Um exemplo é Amy Webb, CEO do Future Today Institute, que lança relatórios de tendências tecnológicas anualmente, o que fez na mais recente edição do evento SXSW, em março, em Austin, nos EUA. E o que ela abordou, entre outros insights, foi que a humanidade precisa abrir mão da divisão de gerações em letras — X, Y e Z — para se perceber conectada pela forte transformação tecnológica que está em curso.
“Nós somos a geração da transição. Todas as pessoas que estão vivas hoje fazem parte de uma grande transição, o que significa que a nossa sociedade será muito diferente quando essa transição estiver completa”, projeta Webb.
É de previsões que vivem esses profissionais, sempre com os olhos voltados para vários anos à frente. “As funções que eles realizam podem ser diversas, incluindo análise de tendências, cenários prospectivos, antecipação de riscos e oportunidades, inovação e desenvolvimento de produtos ou serviços, e eles podem ser consultores estratégicos sobre esses temas”, explica a doutora em gestão do conhecimento Adriana Karam, reitora do Centro Universitário UniOpet.
Se na academia os “estudos de futuro” lançam mão de áreas tão diferentes quanto a teoria de jogos, economia e psicologia, entre outros, nas empresas eles buscam entender as tendências do consumidor e antecipar mudanças de mercado, tecnologia e ambiente competitivo. “Isso permite aproveitar oportunidades e tendências emergentes e mesmo a gestão de riscos e mudanças regulatórias”, lembra a professora.
Não sobrevive a empresa que não planeja e projeta o futuro, e isso vale para todas as áreas. O setor automotivo, desde o surgimento dessas máquinas, é um exemplo de adaptação de olhos no futuro. Hoje, com a entrada no mercado de veículos elétricos, novos softwares, serviços de mobilidade diversos e a valorização da economia circular, trata-se de uma cadeia de produção que não pode se dar ao luxo de enxergar somente a curtas distâncias.
“A transição energética e as revoluções digitais, a transição da venda de veículos para a venda de serviços de mobilidade e a necessidade de tornar a indústria mais sustentável estão transformando profundamente o setor automotivo”, diz Ricardo Gondo, presidente da Renault do Brasil.
Na montadora, o papel de “futurista” não se restringe a um departamento. “O processo de inovação ocorre de forma sistêmica. Por exemplo, a área de ‘market customer intelligence’ realiza constantemente pesquisas voltadas para o futuro, identificação de tendências econômicas, de produto, e hábitos do consumidor. Os resultados são compartilhados em comitês transversais com colaboradores de diversas áreas, e a partir daí se inicia o processo de aperfeiçoamento ou desenvolvimento de um novo produto”, detalha o executivo.
Na seara dos eletrodomésticos, a Electrolux comemora o feito de ter lançado o primeiro aspirador de pó robô do mundo, em 2001, produto que hoje está cada vez mais popular. Para continuar na vanguarda, passou a se planejar tendo como horizonte de cinco a dez anos à frente.
“Estamos adotando uma abordagem de ‘future thinking’ que nos permite não apenas analisar as tendências atuais, mas, também, antecipar e compreender as necessidades futuras dos consumidores. Sob essa perspectiva, incorporamos uma visão empresarial que vai além do próximo ano”, explica a diretora de Design & Consumer Insights do Electrolux Group América Latina, Clarissa Biolchini. “Esse processo orienta nossos esforços de criação, garantindo que estejamos preparados para as demandas e expectativas futuras.”
Prever tendências envolve entender os diferentes perfis de consumo: enquanto alguns desejam manter o contato com a natureza, com apelo para trabalhos manuais e artesanais, outros se encantam com automação máxima, como cortinas que se abrem com um botão na sala de casa.
E a inteligência artificial vem com tudo para dentro dos lares suprir essa demanda. “Em uma linha de refrigeradores, implementamos tecnologias para melhorar a preservação de alimentos, reforçando nosso compromisso com a sustentabilidade e o consumo consciente. Outro recurso é a gaveta que ajusta automaticamente a temperatura para garantir a conservação ideal de cada alimento, promovendo uma maior eficiência no armazenamento”, exemplifica a designer de eletrodomésticos da Electrolux.
“Ainda quando falamos de inteligência artificial, vemos a tendência nascente do consumidor em poder controlar os eletrodomésticos a distância — dentro e fora de casa —, algo que vínhamos trazendo e agora tem ganhado força. Exemplo disso são os ar-condicionados que podem ser ligados a distância para quando o usuário chegar em casa já ter os ambientes climatizados.”
Mas projetar produtos para lançamento futuro não é seara do planejamento estratégico puro e simples? É importante lembrar que o futurismo difere nas ferramentas e abordagens e ainda no horizonte de tempo considerado. “Enquanto o planejamento tradicional faz projeções para curto e médio prazos [de três a cinco anos], as análises de estudo de futuro fazem projeções e análises que se estendem por décadas”, explica a professora Adriana Karam.
Como projetar algo com segurança quando as mudanças são tão rápidas? “Estamos em um momento similar aos primeiros estágios da revolução dos computadores, quando cada terminal custava uma fortuna e ocupava um prédio inteiro”, compara o CEO da BigDataCorp, Thoran Rodrigues. Ele enumera outros avanços que devem ocorrer no futuro próximo, como a “computação espacial”, também conhecida como realidade virtual e realidade aumentada.
“A entrada da Apple nesse mercado, com o Vision Pro, sinaliza uma nova percepção da importância desse espaço para o futuro da computação, e o potencial de transformação é gigantesco. Imagine interagir com a inteligência artificial através de interfaces naturais, como gestos, voz ou mesmo o pensamento”, sugere. Thoran cita ainda a tendência para a próxima década de “sensorização de pessoas”: desde sensores flexíveis incluídos em roupas e acessórios até o implante de chips no cérebro.
Em meio a tantas mudanças esperadas para esse futuro próximo, as empresas buscam incessantemente dados que permitam a identificação de tendências econômicas, de produto e de hábitos do consumidor. Para isso, podem usar informações como a migração demográfica e outros aspectos socioeconômicos da população em geral.
No caso da Electrolux, são realizados estudos de segmentação, hábitos e atitudes. “São painéis de domicílio e ferramentas de escuta social [monitoramento de termos ligados à marca] que nos fornecem uma visão completa do comportamento do consumidor em cada categoria”, explica Biolchini.
Outro recurso da indústria como um todo é a análise e projeção de curvas de inovação. Trata-se de um modelo teórico que busca prever como uma determinada novidade será adotada ao longo do tempo pelas pessoas.
Para isso, uma das ferramentas é a divisão da população em cinco grupos, com base em sua disposição para adotar novas ideias, produtos ou tecnologias, do mais afoito em usar novidades até os retardatários — que são praticamente obrigados a adotá-las para continuar vivendo em sociedade. Para cada grupo, são necessárias estratégias diferentes de comunicação e vendas.
Mas inovar, na indústria, não diz respeito somente a produtos novos, e sim também aos processos industriais. E na indústria 4.0 cresce o papel da automação e do uso do metaverso no dia a dia. Na Renault do Brasil, isso se traduz em mais de 700 robôs; tecnologias como os “gêmeos digitais”, que são representações de objetos físicos nas linhas de produção. De acordo com Gondo, “isso permite a análise de dados em tempo real, com o objetivo de alavancar a performance e melhorar a qualidade”.
E nem só de tecnologia vivem as tendências, mas também de soluções até bem simples. Pensando na adesão de parcela do mercado consumidor a práticas sustentáveis como a compra de produtos usados, embalagens reutilizáveis, alimentos orgânicos, entre várias outras tendências, a fabricante de embalagens em papelão Mazurky, de Mauá (SP), criou uma cestinha de compras em papelão em que é possível aplicar anúncios publicitários.
“Para poder atender às necessidades dos novos padrões de consumo e expandir os nichos, é necessário que a indústria também acompanhe isso e se reinvente, pois há uma demanda que nem o próprio mercado sabe que tem e que, até agora, ninguém era capaz de absorver”, aponta o diretor Eduardo Mazurkyewistz.
Por outro lado, a tecnologia é base para tudo: para aplicar os anúncios na cesta de compras em papelão, foi necessário trazer uma impressora 3D da Espanha ainda não disponível no Brasil.
Para quem deseja se aprofundar e quem sabe atuar na área do futurismo, existem cursos gratuitos como o ministrado por Marcelo Clemente no Instituto Politécnico de Ensino a Distância (iPED). Ele lembra que “futurismo não é achismo nem previsão — é um conjunto de metodologias pautadas na ciência e procura antever possibilidades nas áreas científicas a partir de sinais, evidências e dados”.
A palestrante Martha Gabriel é pesquisadora do tema e futurista pelo IFTF (Institute For The Future). Ela brinca que suas palestras trazem “spoilers dos efeitos a curto prazo do digital para as pessoas e empresas”. “Na última década, percebi que as pessoas estavam com dificuldade de planejamento, porque precisam dos estudos de futuro que permitem traçar cenários mais amplos”, explica em um de seus vídeos.
Ela sugere três habilidades para cada um de nós ter em mente se quisermos lidar bem com as transformações futuras — tendo como meta um futuro “supersmart”, num cenário em que o humano coopera de forma saudável com as máquinas. São eles: pensamento crítico, que envolve o ceticismo; convivência com pessoas de pensamento diferente, uso da lógica e argumentação; e ainda estar abertos à adaptação, com agilidade e capacidade de se emocionar.
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