A escrita que encanta transmite informação com mais competência. Um texto que foge das chatices e das abstrações faz mágica
Por Isabel Clemente – Valor – 01/11/2023
A loja da Apple em Covent Garden, no centro de Londres, vive cheia de gente como são as lojas da Apple em cidades ricas e turísticas como Londres. Sentada no hall principal –aguardando atendimento com um computador agonizante nos braços – assisti a uma das oficinas gratuitas diárias sobre fotografar com celular.
Por um instante esqueci que eu tinha um problema (uma escritora sem uma máquina para escrever tem um problema) e parei para admirar o óbvio: qualquer pessoa com um bom celular pode fazer fotos impressionantes hoje em dia. Quase profissionais, disse o convincente instrutor, em meio ao entra-e-sai da loja e ao burburinho de clientes e curiosos.
Quase dois anos depois, a cena volta para me lembrar que a tecnologia viabilizou fotos muito mais bonitas. Todo mundo quer sair bem no retrato. Comunicar com imagens que fiquem. O que falta para essa ideia tomar conta da escrita?
A escrita que entretém, seduz e encanta transmite informação com mais competência. Um texto, um ensaio e um artigo que comunicam com clareza e charme, que fogem das chatices e das abstrações fazem mágica. Uma leitura fluida entra na nossa mente como um sinal de wi-fi nos conecta ao mundo. Sem dor.
Tudo isso para dizer que eu continuo inconformada com as regras do Enem para a redação de aspirantes a uma vaga em universidade pública no Brasil. Continuo inconformada com orientações que associam coesão de ideias ao uso obrigatório de conectivos e placas, o que confunde quem escreve sem tanta prática. Não me conformo com essa proposta que enterra a criatividade em nome de uma suposta habilidade de argumentar. Quem diria que o país “do samba e do futebol” proibiria gingados e dribles no texto?
Amy Tan, autora de várias obras de ficção, conta em seu livro “The opposite of fate” sua trajetória de escritora. No capítulo em que aprofunda um debate sobre literatura, ela relata ser incapaz de defender uma ideia num ensaio. Ela escreve por ter perguntas sobre a vida, e não respostas. “Escrevo porque quase sempre não consigo me expressar de outra forma, e acredito que eu implodiria se não encontrasse as palavras. Eu não consigo parafrasear ou oferecer uma moral sucinta sobre amor e esperança, dor e perdas. Eu preciso recorrer a uma caligrafia mental, refletir e trabalhar sob a forma de uma história”, escreve Amy Tan.
A redação do Enem quer um texto dissertativo-argumentativo. Não é contação de história. Tudo certo. A “produção textual” para entrar no nível superior tende a influenciar (e limitar) o ensino da escrita nas escolas. Sempre foi assim. E isso pode ser um problema.
Procure exemplos de redações “nota 1000” e me conte o que achou do texto.
“As sete pragas do ensino de português”, de Carlos Alberto Faraco, é um livro de 1975 que continua atual. A terceira praga, segundo o autor, são as redações. Reproduzo aqui um pequeno trecho que encontrei no livro “A prova de redação e o acesso à UFRJ” (Ed. UFRJ/2013), de Marcelo Macedo Corrêa e Castro:
“Queremos que nossos alunos escrevam, mas não lhes criamos as condições para tal. (…) Todos sabemos o quanto nos custava atingir os limites mínimos de linhas (estes limites são indispensáveis neste processo, do contrário, ninguém escreve nada!). Mas, assim mesmo, continuamos a submeter nossos alunos a essa tortura monstruosa que é escrever sem ter ideias. Consequência: os alunos deixam a escola sem saber redigir, sem ter desenvolvida a capacidade de escrever. (Faraco, 1990, p. 19)”
Graças à pesquisa de Corrêa e Castro, pude resgatar o tema da redação do meu vestibular, em 1990. O texto motivador era uma crônica de Affonso Romano de Sant’anna e a proposta, “discutir”, por meio de uma dissertação, a pergunta do cronista: “a palavra vale ou não vale?”
As crônicas do Veríssimo foram a porta de entrada para eu me interessar pelo resto do jornal. Crônica é o gênero que me levou inteira para a literatura, os livros e para o jornalismo. Dois dos meus livros são de crônicas. Então posso agora reimaginar – porque lembro – o quão à vontade me senti. Eu tinha 17 anos.
A minha filha de 17 anos fará vestibular no próximo domingo. E uma de suas preocupações é chegar ao fim da redação do Enem indicando o que precisa ser feito (proposta de intervenção) para mitigar um problema (que ela ainda não sabe qual é), quem fará a ação, como e para quê. Sem isso, perderá pontos. A capacidade de fazer perguntas, logo elas, tão importantes para expressar curiosidade e inteligência, perdeu a vez entre as competências da escrita. O mais importante é trazer respostas e defender um ponto de vista. Num mundo tão cheio de questões complexas, e tanta gente cheia de certezas, precisamos de assertividade sobre temas que desconhecemos
Por que você escreve?
“Escrevo porque amo palavras desde criança”, escreveu Amy Tan, em meu nome e de tanta gente por aí. A escrita sempre me salvou e continua me salvando. Me ajudou a entrar numa escola pública disputada e a pagar minhas contas, a lidar com dor e a eternizar alegrias, a fazer amizades e conexões inesperadas. Um dos meus maiores prazeres é topar com textos lindamente escritos, ensaios sedutores que transmitem conhecimento sem que eu sofra. Amo histórias que me levam pela mão para lugares que não habito, para a vida de personagens que desconheço. Um texto bem escrito é um presente, um evento, uma paisagem bonita feita de palavras. Em última instância, um texto bem escrito me faz sentir melhor porque me sinto inteligente.
Eu não entendo por que a redação passou a ser algo tão chato. Eu não entendo por que certos grupos, como os acadêmicos, consolam-se com a produção de textos pouco lidos fora da academia. Eu não entendo por que tanta gente acredita estar condenada a escrever sem criatividade, prazer e liberdade. Eu não entendo por que a redação passou a ser algo tão chato. Eu não entendo por que certos grupos, como os acadêmicos, consolam-se com a produção de textos pouco lidos fora da academia. Eu não entendo por que tanta gente acredita estar condenada a escrever sem criatividade, prazer e liberdade. Eu não entendo por que o uso de jargões e abstrações como a tal da metalinguagem ainda são vistos como prova de erudição. Já era tempo de simplicidade ter virado sinônimo inquestionável de sofisticação também na escrita, como fez na moda, na arquitetura, no design, onde menos é mais.
Imagina se a tal oficina de fotografia com celular lá em Covent Garden começasse com o seguinte disclaim:
“Essa aula é exclusiva de profissionais da fotografia, gente que usa a foto como um fim e não um meio. Quem não se encaixa na definição, favor retirar-se do hall, tapar os ouvidos ou virar de costas. Continue tirando fotos sem-graça, sem enfeite, sem poesia, porque você não precisa disso.”
Quem ama palavras precisa de chance para perseguir uma escrita que comunique, informe, inspire e atenda seus propósitos de um jeito cativante e potente, algo que há pouco tempo a gente acreditava ser exclusividade da literatura. Essa paixão pelas palavras extrapola carreiras. Isso que chamamos de escrita criativa é muito mais eficiente para arrastar multidões do que um texto discursivo-argumentativo cravejado de termos antiquados.
Qual a habilidade que a galera universitária vai precisar, afinal, para defender seus pontos de vista?
https://valor.globo.com/opiniao/isabel-clemente/coluna/o-poder-de-um-texto-bem-escrito.ghtml
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Adorei o texto quero receber mais.
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