Escrever é o superpoder que você pode desenvolver para deixar sua marca no mundo, num post de rede social, num email, numa carta redigida à mão
Por Isabel Clemente* – Valor – 06/09/2023
Oi,
Faz tempo queria te dizer isso: você não precisa de um contrato de publicação de livro para considerar a sua escrita importante. Toda escrita é nobre. Se você está escrevendo um trabalho acadêmico, escreva como quem quer atingir além dos círculos acadêmicos, para espalhar suas descobertas pelo mundo.
Se você está escrevendo material para um livro didático escolar, escreva como quem quer ensinar metade do mundo sobre as maravilhas da ciência, da geografia, da matemática, e a outra metade sobre línguas, arte, educação física. Se o seu trabalho envolve redigir relatórios sobre atividades passadas, pense nas atividades passadas como histórias que precisam ser contadas de forma atraente do princípio ao fim. Guarde um “era uma vez” no canto da mente, e siga pela estrada dos mistérios, dos absurdos, das coisas engraçadas e surpreendentes que farão do seu relato algo mais do que um relatório.
Escrever é o superpoder que você pode desenvolver para deixar sua marca no mundo, num post de rede social, num email, numa carta redigida à mão. Tem gente que ainda faz isso sim.
Livros não surgem da noite para o dia. Livros são feitos de capítulos. Capítulos são feitos de parágrafos. Parágrafos precisam de frases boas, grandes, pequenas, para criar ritmo, para definir sua voz. Alinhar tudo isso leva tempo. Na era do sucesso instantâneo, é tentador acreditar que um livro pode seguir o mesmo caminho de um vídeo que viraliza, de uma gracinha com milhares de compartilhamentos e curtis. Para o bem e para o mal, não é assim. Cada dia é uma oportunidade para você escrever (e reescrever) algo até chegar ao parágrafo perfeito.
Caso você ainda precise de propósitos para começar a escrever com mais frequência, seguem alguns motivos nobres ou muito pelo contrário que podem servir de inspiração.
Para não perder a amizade
Gabriel García Márquez era muito jovem ainda quando cruzou com o desabafo de Eduardo Zalamea Borda – então editor do suplemento literário do jornal “El Espectador”. Borda reclamava que não havia autores jovens na Colômbia porque os jovens não escreviam. Tomado de solidariedade pelos “companheiros de geração” e disposto a calar a boca do sujeito de quem viria a ser um grande amigo, Gabo – apelido de García Márquez – enviou um conto para o jornal. A história saiu publicada na semana seguinte com uma observação que se revelaria premonitória: “surgia um gênio da literatura colombiana”, escreveu Borda. Diante do que chamou de “encrenca”, e para não deixar mal o amigo, Gabo disse que não teve opção, senão continuar a escrever.
Essa história foi revelada durante uma palestra do escritor na Venezuela, em 1970, e está registrada no livro “Eu não venho fazer um discurso”, editado pela Dom Quixote em Portugal.
Se alguém já te disse que você escreve bem, que leva jeito para o negócio ou, pior, se elogiou em público algo que você escreveu e você preza essa relação, já sabe.
Para viver várias vidas e brincar de Deus
Quem escreve ficção cria mundos imaginários, personagens, cenas, cenários. Tudo vai sendo construído pelo trabalho mágico de reunir palavras. É Gênesis na prática. Ainda que leve muito mais do que sete dias.
Claro que essa inspiração divina não vem do éter. Vivemos num planeta de verdade onde lendas, fábulas, zumbis e outros seres fantásticos refletem medos, relações e desejo muito humanos. Até quem escreve sobre a vida real recria uma história, porque se ela não for atrativa, e não surpreender de alguma forma, a audiência desiste de ler.
No divertido e inspirador “Palavra por palavra” (publicado aqui pela Sextante, em versão traduzida por Marcello Lino), Anne Lemott fala desse poder da escrita. “Desde criança, eu achava que havia algo nobre e misterioso em escrever, nas pessoas que faziam isso bem, que eram capazes de criar um mundo, como se fossem pequenos deuses ou bruxos. Durante toda a vida achei que havia algo mágico em quem conseguia entrar na mente e se pôr no lugar deles, em quem era capaz de tirar pessoas como eu de dentro de si.”
Para pôr ordem na memória
A artista colombiana Emma Reyes publicou um único livro, ao qual se dedicou para dar sentido à conturbada infância. Reconhecida pelo seu trabalho na França, onde viveu até o fim, e incentivada por um amigo e editor, o intelectual Germán Arciniegas, Emma escreveu uma série de cartas para narrar suas desventuras de maus-tratos, abandono e uma opressora educação religiosa. Com leveza e humanidade, o conjunto de cartas deu origem ao “Libro de Emma Reyes”, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Hildergard Feist, sob o título “Memórias por correspondência”. Trata-se de uma narrativa fascinante que nos leva do riso às lágrimas. A artista se revela uma exímia contadora de histórias. A leitura nos proporciona um encontro com a voz da criança e da adulta se intercalando no relato de histórias ora inacreditáveis, ora comoventes. O exercício de ter escrito sobre difíceis emoções deixou algumas lições para Emma, como ela mesma contou a Germán: “E agora – não me julgue. Se você acha que basta ter ideias, eu diria que se não souber expressá-las de forma que sejam compreensíveis, é o mesmo que não tê-las.”
Para se vingar
Nunca esqueci de um ensaio da escritora estadunidense Jocelyn Nicole Johnson, para o LibHub, intitulado ‘How Writing “Vengeful Fiction” Can Make You a Better Person’. Saiu em outubro de 2021. Eu estava isolada no quarto, com Covid, devorando textos e textos sobre o processo da escrita enquanto aguardava a hora para retomar as aulas presenciais do meu mestrado e meu olfato.
Vingança?, pensei. Eu ri. Naquele ensaio, Jocelyn relembra uma série de cenas da vida real que despertaram revolta, impotência, medo – da mulher que gritou com seu filho ainda criança a cenas de racismo explícito – e como sua “vingança” inspirou seus contos.
“Minhas histórias são minha maneira de dizer: eu vi o que você fez. Ele foi registrado em meu corpo. Saiu como um enxame de palavras.’ Apesar do desejo de se vingar, ela escreve que, sua intenção, é deixar o público-leitor com raiva sim, mas com ela. Assim, juntos e “de coração partido”, escritora e audiência poderão agir para remediar e cicatrizar o que partiu porque histórias têm esse poder de transformar a sociedade e as pessoas para melhor.
Se você resolver se “vingar” de alguém ou de uma situação escrevendo, pelamor, muda nome, gênero, cidade, clima. Tire da experiência a emoção que você precisa para contar uma história que revele a sua verdade. Não vai se meter em encrenca.
No mais, um lembrete final: escrever é sofrido, dá muito trabalho, um pouco como correr. Eu sempre me pergunto por que tive essa ideia de jerico, que me deixa cansada, que me faz querer desistir a cada pequeno trecho vencido. Mas ter corrido, como ter escrito, dá um prazer danado.
Um abraço,
Isabel
*Carioca, é formada em Jornalismo pela PUC-Rio e mestre em Escrita Criativa pela Royal Holloway, University of London
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